Brasil, América e Ásia no tabuleiro

Há cem anos, quando este JC chegava às ruas pela primeira vez, a América Latina era ainda um grande centro de atração de imigrantes de todo o mundo. Vasto continente com escassa mão de obra e grande potencial de crescimento, muitas famílias deixaram voluntariamente a Europa, Ásia e Oriente Médio buscando construir uma vida em terras distantes. Somados aos descendentes de quase 4,9 milhões escravos africanos trazidos até 1850, quando oficialmente tem fim o tráfico negreiro, o Brasil recebeu 4,3 milhões de imigrantes europeus entre 1820 e 1932, número muito próximo do Canadá, com 5 milhões, segundo cálculos de historiadores.

Houve um tempo em que não era claro qual destino seria mais propício a trazer prosperidade a uma família migrante, se o Canadá ou Brasil, se a América do Norte ou a Latina.

Hoje, a resposta é clara, e não nos favorece. O Canadá tem um PIB per capita três vezes maior do que o Brasil, tem cinco universidades entre as 100 melhores do mundo (o Brasil não tem nenhuma), e tem uma taxa de homicídios de 1,7 por 100.000 habitantes, enquanto a do Brasil é de 29,5. É mais fácil ganhar um salário melhor, estudar em uma universidade mais bem equipada e com melhores professores (e sem greves) e não ser assassinado no Canadá do que no Brasil. A comparação do Brasil com os Estados Unidos é ainda menos vantajosa.

Decisões equivocadas ao longo da história fizeram com que a América Latina e o Brasil vivessem uma realidade de miséria para grande parte da população. Foto: Igo Bione/JC Imagem

Mas o motor da economia mundial hoje já se deslocou das Américas e passou para a Ásia. Nos últimos 25 anos, a região da Ásia e do Pacífico cresceu 4,2% ao ano – a China, sozinha, 9,4% ao ano. A América Latina não fez tão feio com 2,7% ao ano quando comparada com a América do Norte (2,49%) e a União Europeia (1,8%). Só que esse resultado de 2,7% foi bastante influenciado por um boom das commodities que ocorreu entre 2004 e 2014, quando a região cresceu a um ritmo de 3,6% ao ano. O período não inclui a década perdida, os anos 1980.

Para alimentar o crescimento da China e demais países da região, ganhamos bom dinheiro vendendo soja, frangos, minério de ferro, petróleo e outras commodities. Só que a China rapidamente vem fazendo uma transição de crescimento intensivo na exploração de fatores de produção (como salários baixos) para o crescimento baseado em produtividade, tecnologia e conhecimento. E já diminuiu o seu apetite por commodities.

Assim como duas gerações anteriores à minha conheceram produtos japoneses e coreanos como cópias baratas, eu cresci com “produto chinês” como sinônimo de algo inferior. Mas essa noção está mudando rapidamente. O mais provável é que os recém-nascidos de hoje associem produtos chineses a alta tecnologia e qualidade, como já o são produtos da Huawei, Xiaomi e as plataformas Alibaba e Tencent.

E isso é um ponto importante a se destacar: não é apenas a China que vem numa trajetória fascinante de desenvolvimento, mas todo um grupo de países do leste e sudeste da Ásia, como Tailândia, Malásia e Cingapura. São hoje hubs comerciais e de turismo, investindo fortemente em infraestrutura e educação.

E à América Latina, o que resta? Conseguirá competir no segmento de alta tecnologia e empreendedorismo ou vai se contentar em fazer cópias baratas, como já foi o caso do Paraguai? Talvez nem isso; esse espaço vem sendo ocupado por países em rápido crescimento, próximos da China, e ainda com mão de obra barata como Vietnã, Laos e Mianmar. Uma das coisas que mais me impressionam em morar na Ásia, prestar consultoria e ensinar a executivos e empresas da região é o desinteresse pela América Latina. Excetuando setores como prestação de serviços em petróleo ou compra de alimentos e bebidas, a América Latina é uma grande desconhecida.

Perguntei a um gestor de investimento quais fundos ou mercados ele acompanhava na América Latina e sua cara foi de surpresa: “Nunca tive um cliente que me perguntou sobre investimentos na América Latina”, justificou. Em outra oportunidade, um executivo de banco estatal chinês, ao saber que eu era brasileiro, não escondeu sua decepção com os negócios no País: “Só perdemos dinheiro. É muito difícil conseguir trabalhar no Brasil”, lamentou.

Olhares do mundo dos negócios há um bom tempo se direcionou para os países asiáticos. Foto: Isaac Lawrence/AFP.

Nenhuma região está permanentemente condenada ao atraso ou ao sucesso. Todos os dias, através das nossas decisões individuais e coletivas (políticas), nos desviamos ou reforçamos um caminho. Decisões passadas e instituições afetam a nossa capacidade de mudança – basta ver os problemas da política brasileira –, mas não determinam o futuro.

Quem iria imaginar os Estados Unidos adotando um caminho protecionista e xenófobo com Trump? Ou a China de Mao Tsé-Tung ou o Vietnã de Ho Chi Minh como celeiros do capitalismo? Uma boa dose de pragmatismo e experimentação levaram esses dois países asiáticos a romperem com suas amarras ao crescimento. Estudar e adotar seletivamente o que dá certo e romper com o atraso, inclusive político, são saídas para fazer do Brasil e da América Latina regiões em que milhões possam prosperar e fincar raízes para construir dias melhores, como assim acreditaram os que migraram há cem anos.

Renato Lima é doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e professor na Asia School of Business