A cidade não para

Recife, cidade com quase 220 quilômetros quadrados de área e 1,6 milhão de habitantes, tinha outra feição em 3 de abril de 1919. Nesse dia, uma quinta-feira, a primeira edição do Jornal do Commercio circulou em bairros de casario colonial, com ruas estreitas que ainda guardavam heranças do urbanismo holandês e do barroco português. Mas a cidade onde viviam cerca de 230 mil pessoas entrava no século 20 em busca de novos ares e coloca em prática um projeto de modernização inspirado no Rio de Janeiro, que se espelhou na reforma de Paris do século 19.

No centro do Recife, a arquitetura colonial vinha abaixo e surgiam novas avenidas. Foto: Acervo do museu da cidade do Recife

“Em 1919, exatamente 100 anos atrás, a gente estava com um canteiro de obras no Bairro do Recife. O casario antigo herdado de todo o período colonial vinha abaixo, os arcos desapareciam das portas de entrada da cidade e os trilhos dos bondes elétricos se instalavam nas duas novas avenidas (Rio Branco e Marquês de Olinda). Era uma verdadeira revolução urbana e começava ali no Bairro do Recife”, afirma a arquiteta e urbanista Amélia Reynaldo, professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).

Nesse mesmo ano, o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito (1864-1929) aprova uma legislação que muda a forma de se viver na cidade, diz ela. De acordo com a lei, a arquitetura herdada do Recife colonial, de sobrados conjugados e pouco ensolarados, só serviria para uso comercial e de serviço. “A cidade vai se expandir numa nova lógica, de casas soltas no terreno. Com a destruição do Bairro do Recife, cerca de cinco mil pessoas que ali habitavam se transferem para outros lugares. Os ricos vão para a Rua da Aurora, os pobres vão para São José, e o comércio migra para Santo Antônio, principalmente”, relata.

Foto: Acervo do museu da cidade do Recife

O plano de Saturnino de Brito, observa a arquiteta, não era exclusivo para o Bairro do Recife. Estendia-se por 1,2 mil hectares e chegava a até os bairros da Torre e do Espinheiro, nas Zonas Oeste e Norte, preparando terrenos para a expansão urbana. “É esse projeto de saneamento que estabelece a nossa principal central de tratamento de água, na Cabanga”, diz ela. A ponte construída para levar a tubulação de esgoto ao Pina, na Zona Sul, permite deslocar o crescimento da cidade para a beira-mar. “É assim que surge a Boa Viagem de veraneio”, acrescenta.

Amparada numa lei de janeiro de 1893, que estabelece normas de higienização e melhoramentos públicos, a prefeitura inicia uma série de desapropriações e demolições nos bairros de Santo Antônio e São José, depois das reformas no Bairro do Recife. “A ideia era deixar a cidade saudável, as moradias da época eram consideradas pardieiros infectos e precisavam ser substituídas por edificações salubres”, declara a professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco e coordenadora do Laboratório Urbanismo e Patrimônio Cultural (UFPE-CNPq), Virgínia Pontual.

A cidade onde viviam cerca de 230 mil pessoas estava no século 20 em busca de novos ares e coloca em prática um projeto de modernização inspirado no Rio de Janeiro, que se espelhou na reforma de Paris do século 19. Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem

As mudanças, em nome do progresso, informa a arquiteta e urbanista, aconteceram no Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, Salvador e outras cidades brasileiras. “Era o ideal de cidade moderna da primeira metade do século 20; derruba-se o antigo para construir o novo. No bairro de Santo Antônio, as lojinhas da Praça da Independência e as edificações da Rua Estreita do Rosário são as primeiras as serem demolidas”, informa Virgínia Pontual. É nesse período que surgem as Avenidas Guararapes (1938) e Dantas Barreto.

Projetada pelo arquiteto Nestor de Figueiredo e pelo engenheiro Domingos Ferreira, para melhorar a circulação no Centro, a Guararapes ganha edificações de arquitetura protomoderna e leva ao alargamento da Avenida Conde da Boa Vista, no bairro da Vista. A construção da Dantas Barreto, para fazer a ligação Norte-Sul do Recife, foi executada por etapas. Começa na década de 1930, continua nos anos 1960 e termina em 1973, diz Virgínia.

“A obra demorou tanto tempo que, ao ser concluída, a cidade não precisava mais dela. A Dantas Barreto não tinha mais sentido porque a Avenida Agamenon Magalhães fazia a conexão Norte-Sul”, acrescenta o arquiteto e urbanista Fernando Diniz, professor da UFPE. Nesse período, da década de 1930 aos anos 1970, Belo Horizonte construiu o conjunto arquitetônico de Pampulha (1943); o Brasil ganhou uma nova capital, Brasília, inaugurada em 1960; e os EUA apresentaram em 1973 os prédios mais altos do mundo, naquela época: as torres gêmeas do World Trade Center, derrubadas num ataque terrorista em 2001.

Legenda da foto. Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem

É com o modelo de casas soltas no terreno que são construídas as novas moradias na Boa Vista, no Derby e no Espinheiro. Os padrões urbanísticos modernos chegam associados a mudanças no modo de vida, destaca o urbanista Fernando Diniz, com cinemas, cafés e teatros mais ativos. A urbanização do Derby, no começo da década de 1920, é um exemplo da expansão da cidade por iniciativa pública.

“O Derby era uma área moderna projetada, com uma praça mais aberta, casas elegantes e sem necessidade de demolições como aconteceu no Bairro do Recife, em Santo Antônio e em São José”, informa Fernando Diniz. Os terrenos foram loteados, mas como não apareceram compradores para todos, os espaços foram ocupados com equipamentos públicos, como a atual Fundação Joaquim Nabuco, o Colégio da Polícia Militar e a Casa do Estudante de Pernambuco, entre outros prédios.

Na década de 1930, a Praça do Derby é reformada pelo paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), que atua em Pernambuco a convite do governo do Estado. Para a arquiteta e paisagista da UFPE Ana Rita Sá Carneiro, a contribuição mais forte de Burle Marx é a percepção que ele tinha da natureza. “A importância que a civilização europeia dava e dá ao jardim, como monumento que precisa ser cuidado e que deve ser parte da cidade, ele trouxe para o Recife. Ele juntou coisas que não tinham sido ainda trabalhadas aqui, como o conhecimento botânico com a arte”, ressalta Ana Rita Sá Carneiro.

Num depoimento a jornais locais, em 1935, Burle Marx define jardim como obra de arte. “Dizer isso é como se você estivesse plantando uma semente muito preciosa na cidade. Ele tinha uma preocupação planetária, uma visão da ecologia sem fronteiras. Essa experiência de natureza era a grande filosofia de Burle Marx”, diz Ana Rita. O paisagista tem 19 jardins públicos e 14 privados executados no Recife.

A cidade só cresce

No processo de expansão do Recife surge, na década de 1950, o câmpus da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nas terras do antigo Engenho do Meio, situadas na Zona Oeste. “É um espaço novo urbano que expressa, em certa medida, o avanço científico entre os anos 20 e os anos 50. Infelizmente, o câmpus nunca foi concluído como nos planos iniciais, mostrando ao longo do tempo essas diversas variações na maneira de pensar a arquitetura na cidade”, declara o urbanista Luiz Amorim, professor da UFPE.

A invenção da Cidade Universitária, com projeto de Mário Russo, arquiteto modernista italiano que chegou ao Recife no fim dos anos 1940, faz parte de um programa nacional de federalização das diversas escolas e faculdades existentes no País, informa Luiz Amorim. “A experiência do campus universitário foi um exercício em várias escalas, com a criação de uma nova instituição pública dedicada à investigação, ao ensino, à formação profissional e à uma relação direta com a comunidade por meio de atividades de extensão”, diz o arquiteto da UFPE.

O câmpus na UFPE nunca foi concluído como no projeto inicial. Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem.

A cidade também se expande com a construção de conjuntos habitacionais populares, como a Vila das Lavadeiras, em Areias, na Zona Oeste, da Liga Social contra o Mocambo, fundada em 1939; a Vila dos Comerciários, feita com recursos do Instituto de Aposentadoria e Pensão da categoria (IAPC) e inaugurada em 1942 na Tamarineira, na Zona Norte; e o conjunto do Ipsep nos anos 1950, na Zona Oeste, do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Funcionários do Estado.

“O Ipsep vem a formar um bairro inteiro, ele e o câmpus da UFPE são dois ensaios relativamente contemporâneos que mostram esse desenrolar de soluções urbanísticas”, destaca Luiz Amorim. O Recife que o JC viu se desenvolver, acrescenta a professora da Universidade Católica de Pernambuco Amélia Reynaldo, “era o centro do pensamento urbanístico do País.” A cidade, diz a arquiteta, “recebeu pensadores modernos, como os arquitetos Luiz Nunes, Acácio Gil Borsói (cariocas) e Delfim Amorim (português).”

Em 1964, a construção de conjuntos habitacionais com recursos do BNH dá início a outro processo de reestruturação espacial da cidade, diz a arquiteta e urbanista Norma Lacerda, professora da UFPE. “É um urbanismo de quantidade e não de qualidade. Na classe média, começa a destruição de casas no Espinheiro, Graças, Derby e Boa Viagem, que são substituídas por prédios altos, gerando a ocupação intensiva do solo”, afirma Norma Lacerda.

Os conjuntos populares financiados pelo BNH, diz ela, contribuem para o deslocamento extensivo das camadas mais populares para áreas distantes e ainda sem infraestrutura, como os Curados, no Grande Recife. “Essa forma de ocupação termina criando loteamentos clandestinos e invasões”, observa Norma Lacerda.

“Surpreendentemente, derrubaram em Boa Viagem edifícios de oito e nove pavimentos. Eles tinham substituído casas de veraneio e foram demolidos para a construção de edifícios com 50 pavimentos”, declara Luiz Amorim. De acordo com ele, o famoso bairro da Zona Sul nasce na década de 1920 como uma zona de expansão da malha urbana com outra configuração. “A ocupação é muito mais motivada por novos hábitos de morar”, diz o arquiteto.

Em Boa Viagem, moradia próxima do mar e sem risco de enchentes atraiu população. Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem.

Com as grandes enchentes do fim dos anos 1960 e começo da década de 1970 há outra movimentação para Boa Viagem. “Uma camada mais alta da população, que já se sentia atraída pelo modo de viver perto do mar, recebe uma oferta de prédios altos, com apartamentos de 300 e 400 m², cobertura de 500 e 600 m², com o conforto que tinham em suas residências, sem o risco de cheias”, observa Luiz Amorim.

Entre construções, demolições e transformações, o Recife cria em 1983 um modelo que repercutiu no Brasil inteiro: as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis). Elas asseguram o direito à moradia para uma população pobre residente em terrenos cobiçados pelo mercado imobiliário. “Coque, Coelhos e Brasília Teimosa, ocupações espontâneas transformadas em Zeis, ficam em áreas centrais e não nos morros e na periferia”, afirma o arquiteto e urbanista Geraldo Marinho.

Garantir a permanência das famílias no local onde vivem é o mérito da Zeis. “E a grande dívida é não ter avançado na qualificação desses espaços, quase todos carentes de infraestrutura”, avalia Geraldo Marinho, que atua como consultor. “A ideia das áreas de interesse social nasce ainda num governo vinculado à ditadura, com Gustavo Krause, que tinha um perfil disposto ao diálogo social”, diz ele.

Criação das Zeis garantiu permanência de comunidades onde já moravam, como em Brasília Teimosa. Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem

O programa de regularização das Zeis (Prezeis) é oficializado em 1995 na gestão de Jarbas Vasconcelos. “É um salto qualitativo porque a cidade reconhece a diversidade de perfil nas ocupações dos seus espaços”, reforça Geraldo Marinho.

O Recife tem 74 Zeis e sugere, na atual revisão do Plano Diretor, a criação de mais uma, o Pilar, no Bairro do Recife. “Os jovens que estão nesse momento com a missão de pensar a cidade precisam saber que ela tem um enorme passado que pode, sem dúvida, orientar o futuro. É impossível que a gente tenha competência para pensar algo novo sem olhar para trás. O novo é, automaticamente, a reinterpretação do passado”, alerta Amélia Reynaldo.