A vida que muda todos todo dia

Os livros trazem grandes fatos históricos. Os jornais, também. Mas enquanto a crônica do dia a dia, em suas minúcias, é omitida pelos primeiros, nos periódicos de circulação diária ela se torna a argamassa que sustenta o mosaico de uma sociedade, de uma época, de um lugar. O Arquivo Público de Pernambuco guarda, em suas prateleiras, os 100 anos de publicação do Jornal do Commercio. O Jornal do Commercio guarda, em suas páginas, modos, modas, tendências e comportamentos que podem estar estampados numa discreta nota de rodapé, em reportagens aprofundadas ou escancarados num anúncio que toma uma folha inteira.

Com reverência folheamos o impresso que o tempo tornou amarelado e quebradiço, como a pele de um ancião. Décadas após décadas, histórias de nomes esquecidos misturam-se aos fatos e pessoas que mudaram os rumos da humanidade. Eles estão ali, lado a lado, lembrando que não há o macro sem a existência do micro. Os jornais funcionam como espelhos: da nossa enormidade como humanidade e da nossa pequenez como indivíduos que nascem e morrem anonimamente, mas não “desimportantemente”.

As colunas sociais registravam mais palavras do que fotos. Aqui e ali o rosto de alguém que deve ter tido seus méritos para conquistar o privilégio. Como na seção Registo, de junho de 1919, que anunciava a apresentação de Julito Ramos, uma criança prodígio que, aos 9 anos e 10 meses foi à redação do JC entregar em mãos dois convites para o seu recital de piano, no Clube Internacional. Julito, pelo que lemos, desde os 4 anos tocava Beethoven, Liszt e Chopin com apurada técnica. Os jornalistas previam-lhe fama e fortuna. Concretizada? Não se sabe. O Google não mostra nenhuma ocorrência relevante sobre este nome, nesta época, nesta área. Julito Ramos viveu sua glória ali, adiante, um vácuo.

Em sua circulação diária, os veículos impressos, na vã tentativa de se perpetuarem para a posteridade, ratificam a verdadeira essência da palavra “impermanência”.

OS ANOS LOUCOS

Naquele início da década de 1920, os chamados “Anos Loucos” ainda não davam o ar de sua graça num Recife tradicional. O direito das mulheres ao voto só viria a acontecer 12 anos adiante, em 1932. Nos Estados Unidos, o sufrágio feminino já estava garantido desde 1917.

A atriz norte-americana Theda Bara, primeiro símbolo sexual desta década, era vista como uma mulher a ser temida ou cobiçada, não imitada pelas damas da sociedade. Os títulos dos filmes que protagonizou, entre 1914 e 1926, davam conta dessa aura de sedução: The Unchastened Woman (A Mulher Subjugada, em tradução livre), de 1925, When a Woman Sins (Quando uma Mulher Peca) e When Men Desire (Quando os Homens Desejam), de 1918. Em julho de 1920, o JC abre para a fala de Theda Bara: “Uma vez, eu e minha irmã Esther, em Washington, entramos num elevador em que ia um casal. A mulher viu-me e conheceu-me. No andar mais próximo mandou parar o elevador e deu um puxão no marido para fora”.

Os veículos impressos, na vã tentativa de se perpetuarem para a posteridade, ratificam a verdadeira essência da palavra “impermanência”

DÉCADA CONFUSA

A década de 30 começou com a quebra da Bolsa de Nova York, propagando ondas de empobrecimento pelo mundo afora, e terminou com a deflagração da Segunda Guerra Mundial. Como é usual em tempos difíceis, o escapismo ganhou destaque e Hollywood, como a fábrica de sonhos que sempre foi, nos brindou com novos modelos de feminilidade e masculinidade.

As páginas femininas da época registravam este momento de incertezas históricas. “A cintura voltou ao seu lugar normal”, “As mulheres voltam a ser femininas” celebravam os artigos especializados. Os vestidos e saias ainda eram longos, mas a silhueta, ajustada, deixando para trás as formas tubulares e soltas das melindrosas.

Das telas emergiam as novas divas, mulheres mais atléticas, bronzeadas e longilíneas – algumas com atitudes assertivas comumente atribuídas aos homens – como Greta Garbo, Marlene Dietrich, Bette Davis, Joan Crawford e Katharine Hepburn.

Essas mesmas páginas dedicadas ao leitorado feminino sinalizavam de forma sutil, mas inequívoca, a nova estética vigente. Os anúncios de cintas modeladoras passavam a competir em espaço com as luvas e os chapéus. Fórmulas que prometiam um emagrecimento milagroso também se dispuseram a fazer parte do rol de anunciantes. É que os corpos começavam a sair das roupas, deixando à mostra uma maior superfície de pele.

O biquíni só seria inventado na década de 40, e massificado na década de 50. Mas é isso o que os jornais mostram: não há um distante sem um próximo, e este próximo é, geralmente, imperceptível a olho nu.

O TEMPO MIÚDO

O tempo registrado nos jornais é o tempo miúdo. Totalmente diferente daquele que percebemos nas enciclopédias, nas quais as décadas são comportadamente segmentadas pelas alterações que imprimiram nas sociedades, mundo afora. Este movimento diário permite entender que as mudanças – todas elas – embora ganhem uma força tremenda quando precisam acontecer, movimentam-se em ondas, de avanço e retrocesso, enquanto o conservadorismo duela com o revolucionário. Um existindo para erodir a razão de ser do outro. O que posteriormente se percebem como acontecimentos que mudaram os destinos da humanidade, na dissolução do ritmo das horas cotidianas disfarçam-se de insignificância.

Em 1941 – com a Segunda Guerra Mundial já em andamento – proibiu-se no Recife, a marchinha A Mulher do Padeiro, por ter como tema um adultério. O JC noticia em 11/2/41 que o Clube Português não permitiu que ela fosse tocada nos bailes de Carnaval. Mario Melo escreveu: “Ainda a música repugnante. Exaltação de uma infidelidade conjugal e duma tolerância doentia por parte do marido enganado”.

Detalhe: foi a canção mais cantada no Carnaval pernambucano.

Em 1944, com a conflagração que viraria o mundo de cabeça para baixo chegando ao fim, a crônica diária louvava o hábito de se formar fila no Recife: “Felizmente o recifense está adotando as filas nos cinemas, onde já se pode ir calmamente sem o receio de machucadelas e empurrões”, elogia texto de 1944, que foi assinado por Josefa de Farias.

A coleção do Jornal do Commercio sendo manuseada no Arquivo Público. Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem.

NADA COMO ANTES

Se nas décadas de 20 e 30 não se falava sobre o ato de comer e beber em público, a não ser em ocasiões de gala, os anos 40 começaram a admitir que o hedonismo passava também pelos prazeres do paladar. Até então, anúncios de bebidas só se fossem de cunho medicinal: era o tônico que restaurava a cabeleira, a infusão que resgatava as funções estomacais e até o vinho que prometia vigor.

Mas, em junho de 1944, uma propaganda anunciava, finalmente, a chegada da cerveja Brahma Chopp ao mercado recifense: “A princípio, apenas o Rio e São Paulo tiveram o privilégio de tomar a fabulosa cerveja”, assegurava o texto publicitário.

Se passássemos as folhas de um jornal muito rapidamente, naquele efeito de desenho animado, veríamos a lentidão dos dias se transformando em uma paisagem de quebra-cabeça, na qual cada peça se encaixa e a falta de uma delas invalida a conclusão do jogo.

Em 1956, depois que Brigitte Bardot usou as duas peças em E Deus Criou a Mulher, filme de Roger Vadim, abriu-se uma porta que jamais seria novamente fechada. Embora a reverberação do seu ato tenha sido sentida em maior ou menor intensidade, o foi, mais cedo ou mais tarde.

Em 1957, um anúncio agradecia nominalmente aos primeiros compradores por “acreditarem no projeto” e adquirirem um apartamento no ousado projeto de Joaquim Rodrigues: o Edifício Holiday, este mesmo que hoje virou um esqueleto fantasma, ameaçado pela degradação de sua estrutura. Boa Viagem era a nova fronteira para a moradia da classe média.

Os anos 60 pertenceram aos jovens, num movimento poderoso contra tudo o que estava pré-estabelecido. Uma outra guerra, a do Vietnã – que começou em 1955 e se estendeu por 20 anos – serviu como catalisador poderoso para inúmeros movimentos em favor da liberdade e igualdade das minorias, sendo o feminismo um deles.

Em 10/06/1963, o Jornal do Commercio publicava os Mandamentos da Esposa Modelo:

  • Nunca abra as cartas destinadas ao seu marido
  • Não pergunte onde ele esteve se ele chegar mais tarde em casa
  • Nunca o desminta em público
  • Nunca lhe faça cenas de ciúmes