Décadas de debates e muitas reflexões

De um Freyre com “y”, a outro Freire com ‘i”. Talvez através desses dois autores, pernambucanos com sobrenomes quase iguais e ideias bastantes distintas, seja possível traçar um pouco do que tem sido a história do pensamento do Estado nos últimos 100 anos. De um lado, aparece a visão afetiva e original de Gilberto Freyre (1900-1987) sobre a sociedade do açúcar e a formação mestiça brasileira, analisada com uma sociologia antropológica. Em outro campo, a pedagogia revolucionária de Paulo Freire (1921-1997), disposta a pensar a educação através do diálogo e da realidade dos alunos, que não por acaso o tornaria hoje o autor acadêmico brasileiro mais influente no resto do mundo.

Charge de Paulo Freire.

Ao longo desses 100 anos, o Jornal do Commercio acompanhou parte dos debates (e das polêmicas) no pensamento nacional de forma direta ou indireta. É de certa forma impossível elencar todos os nomes e eventos, das visitas de Marcel Proust (1957) e do casal Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre (1960) às formulações de autores como o filósofo e arquiteto Evaldo Coutinho (1911-2007), o engenheiro e poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), o crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981) e os críticos literários João Alexandre Barbosa (1937-2006) e Álvaro Lins (1912-1970), entre muitos outros.

A Semana de Arte Moderna, em 1922, abala o debate estético da época – Joaquim Inojosa, do JC, seria um dos seus entusiastas em Pernambuco. Ao retornar dos seus estudos nos Estados Unidos, o jovem Gilberto Freyre organizaria o 1º Congresso Regionalista do Nordeste, em oposição aos preceitos futuristas da Semana de 22 e defendendo um modernismo que levasse em conta também a tradição e as especificidades regionais.

Em 9 de fevereiro de 1926, o JC noticiou os eventos do primeiro dia do congresso. Ascenso Ferreira leu versos “de um sabor particularmente regionalista”; Gilberto Freyre abordou a estética e as tradições da cozinha pernambucana: “Lastimou, ainda, que no Brasil a cozinha esteja perdendo o seu aspecto propriamente regionalista, com a importação de pratos estrangeiros. Citou os quitutes a seu ver mais saborosos, e os que melhor agradavam aos antigos, recordando comezainas opíparas dos dominadores de outrora, em cujas mesas eram abundantes os pratos nacionais”.

Charge de Gilberto Freyre.

Mais do que uma mera disputa de visões literárias, o regionalismo era uma base de pensamento mais ampla para Freyre. “O regionalismo já nasce como um projeto civilizatório”, descreve o professor de Letras da UFPE Anco Márcio Tenório. É a partir de 1933, no entanto, com o lançamento de Casa-Grande & Senzala, que a presença do autor nos debates nacionais se torna incontornável. Se a ideia das raças puras e da eugenia tomava conta de parte do mundo, Freyre elaborava um livro que estabelecia a mestiçagem não só como uma marca da formação brasileira, mas como uma marca positiva.

Os avanços freyrianos são notáveis mesmo nos dias de hoje. Anco Márcio destaca, por exemplo, a metodologia singular do sociólogo, que não só trouxe o olhar antropológico para o estudo de uma sociedade complexa como carregou os seus trabalhos com um ponto de vista expressionista, que só seria incorporado à academia anos depois. O grande sabor do seu texto, no entanto, talvez venha da sua aproximação com a história do cotidiano e de sua preocupação com os detalhes da rotina de antigamente.

A valorização das tradições também o tornava um conservador em vários aspectos – Freyre foi preso durante a ditadura Vargas como comunista, mas apoiou publicamente a ditadura militar de 1964. Em um artigo no JC de 1942, ele ressaltava que os melhores valores do País eram os “autênticos aristocratas”, por exemplo. E, apesar de descrever em alguns momento também o sadismo dos donos de escravos, as obras de Freyre sempre ressaltaram mais os aspectos apaziguadores das relações sociais e raciais no Brasil do que suas contradições, conflitos e violências diárias.

Freyre também era um polemista. Quando o médico pernambucano Josué de Castro (1908-1973) começou a pesquisar a fome e a alimentação no Brasil, o sociólogo o criticou por se arriscar em áreas das ciências humanas que iam além dos seus estudos. Josué, em outro texto, iria acidamente expor erros do autor de Casa-Grande & Senzala em questões sobre a nutrição.

Geografia da Fome, a principal obra de Josué, é revolucionária em seu retrato da miséria. A fome, a partir do olhar dele, deixou de ser vista como um fenômeno residual ou restrito ao período das secas: tratava-se antes de tudo de um fenômeno social e histórico, criado e mantido pelo homem. Muito além da falta de comida, Josué pesquisou também os hábitos alimentares das diferentes regiões. “No Nordeste Açucareiro, também feijão e farinha, agregados ao charque (carne seca) e à macaxeira, com as mesmas deficiências proteicas que encontramos na Amazônia. No Sertão Nordestino, ou Nordeste Seco, a carne, o milho, o feijão e a rapadura, uma dieta mais nutritiva do que a observada na zona úmida e litorânea, embora sujeita à fome em períodos de longa estiagem”, escreveu.

Josué de Castro também teve uma vida política intensa e, mesmo respeitado internacionalmente como pesquisador da fome, terminou exilado do Brasil por conta da ditadura. Morreu enquanto esperava o passaporte para finalmente voltar, em 1973.

Se as discordâncias com Josué foram de caráter mais técnico, as críticas de Freyre ao arcebispo de Olinda e Recife Dom Helder Câmara eram mais duras. Um artigo do JC de 1966 era intitulado absurdamente como “Gilberto Freyre compara Padre Hélder a Goebbels”. Nos seus constantes ataques, o sociólogo argumentava que o arcebispo era mais um orador ou político do que um religioso.

Josué de Castro (à esq.) estudou a fome como fenômeno social. Joaquim Cardozo (ao centro) calculou obras de Brasília. Dom Helder defendeu a igreja ao lado dos pobres e contra a ditadura. Fotos: Divulgação (Centro Josué de Castro/Reprodução/CENDHEC).

Hoje em processo de beatificação, Dom Helder tem uma contribuição importante para o paradigma religioso do Brasil. Foi uma figura essencial na denúncia dos crimes da ditadura fora do Brasil. E, mais do que isso, foi um dos protagonistas na percepção de que a Igreja Católica tinha o dever de ficar do lado dos mais pobres. Suas cartas e diários revelavam sua capacidade de conectar pensamento teológico com visão social crítica, além de mostrarem uma figura religiosa atuante nos debates do Vaticano.

Dom Helder lamentava, durante a ditadura, o exílio de um colega pernambucano: “Desde 1964, o Chile guarda Paulo Freire, que o Brasil não soube aproveitar devidamente”. Foi já fora do país que o educador publicou a sua grande obra, Pedagogia do Oprimido (1968), que o tornaria mais tarde o intelectual brasileiro mais citado em universidades lá fora. Ali, Freire começaria a formular a teoria de uma educação em que o professor estabelece um diálogo com os estudantes, deixando o método fônico do bê-a-bá de lado e partindo da realidade material e do contexto dos alunos. Assim, nada de “vovô viu a uva”, mas sim os termos e problemas com que as pessoas de fato conviviam no seu cotidiano, com o objetivo não só de ensinar conteúdos, mas de também permitir uma formação crítica.

Antes disso, ainda no Brasil, Paulo Freire já tinha obtido resultados com seu método de alfabetização de adultos em 1963: ensinou 300 adultos a lerem um período de apenas 45 dias. Desde 1960, o Movimento de Cultura Popular (MCP), liderado por Germano Coelho na gestão de Miguel Arraes, começava a usar princípios paulofreirianos para atuar no ensino e na cultura. O JC noticiava que o grupo havia entregado dez escolas ainda no ano da sua criação: uma delas “foi construída no tempo recorde de oito dias, salientando-se que o galpão foi levantado pela própria população do bairro”.

O professor da USP Moacir Gadotti diz, no livro História das Ideias Pedagógicas, que Freire aplicou uma teoria do conhecimento à educação, propondo que aluno e professor aprendam juntos em uma prática educativa que sempre repensa a teoria que a sustenta. “Desde o início dos meus trabalhos eu procurava alguma coisa além do que um método mecânico que permitisse ensinar rapidamente a escrita e a leitura. É certo que o método devia possibilitar ao analfabeto aprender os mecanismos de sua própria língua. Mas, simultaneamente, esse método devia lhe possibilitar a compreensão de seu papel no mundo e de sua inserção na história”, afirmou Freire.

Tanto a obra de Paulo Freire como a de Gilberto Freyre continuam a receber leituras apaixonadas e críticas na atualidade, o que não é pouco. De um sociólogo que olhou minuciosamente a formação brasileira até um pedagogo que buscou inventar uma nova forma de educar crianças e adultos, sem dúvida foram décadas de debates e reflexões intensos.