Um risco real no mundo digital

Tenho uma amiga que trabalha para uma empresa global de desenvolvimento de websites. De Toronto, no Canadá, ela atende remotamente clientes brasileiros. É um trabalho que exige qualificação, paga bem e é bilíngue, em português e inglês. A realidade se repete em diversas empresas que atuam com serviços digitais, uma evolução do atendimento ao consumidor: o call center vai dando lugar a um serviço remoto, mais complexo e com salários melhores.

E isso é um dos grandes desafios do Brasil e do Nordeste, diante do analfabetismo digital e de dados, da baixa educação matemática e do monolinguísmo brasileiro. É uma exportação de empregos para o exterior que só tende a se agravar na nova economia digital.

Na crise que assola o Brasil desde 2015, desemprego, violência e negócios perdidos são obviamente a face mais perceptível. Mas um dano mais profundo e duradouro ainda não parece percebido pela imensa maioria da população: o risco de desemprego estrutural crônico.

Com a honrosa exceção de polos tecnológicos vocacionados para a nova economia, como o Porto Digital no Recife, o San Pedro Valley em Belo Horizonte e a TecnoPuc em Porto Alegre, a maioria das pessoas, organizações e empresas do Brasil está descolada da realidade digital.

Recentemente, como estudante de MBA com especialização em Gestão de Tecnologia e Inovação, fiz um estudo sobre inteligência artificial e a evolução dos call centers. Em todo o globo, nos anos 2000, países e regiões pobres – como Índia, Malásia e, dentro do Brasil, cidades como o Recife – deram incentivos fiscais para atrair empresas de telemarketing.

A conta era ótima: call center era emprego que exigia pouca experiência e qualificação profissional. Foram milhares de vagas, a alegria do primeiro emprego de muita gente, principalmente universitários.
Mas a evolução tecnológica e a mudança de comportamento mudaram o jogo. Pouca gente hoje suporta o invasivo telemarketing.

PORTO DIGITAL Uma das poucas ilhas de excelência existentes no País em relação aos novos tempos. Foto: Arnaldo Carvalho/JC Imagem.

“NÃO PERTUBE”

No Canadá, o governo permite ao cidadão incluir o número numa lista de “não perturbe”. Na Europa, a nova legislação de proteção de dados é severa quanto ao direito à privacidade. O poder e a escolha são dos clientes.
E eles fazem contato principalmente via aplicativo, e-mail ou robôs – o atendimento automatizado via aplicativos que aparecem no canto da tela. Pare e pense: quanta gente você conhece que ligou para um call center do Uber ou AirBNB?

Nessa revolução digital, o trabalho do call center, que antes não pedia experiência ou qualificação, agora exige conhecimento técnico e digital.

E as vagas vão pela internet para o exterior, para pessoas que falam ao menos dois idiomas e podem trabalhar de qualquer lugar, inclusive de casa.

E isso enquanto a inteligência artificial não reduzir também esses empregos.

No Brasil e no Recife, os call centers fecharam, encolheram e mudaram. Não por causa da crise.

É uma mudança mais profunda e que já mudou e vai mudar muitos outros negócios e profissões, de motoristas a advogados.

A revolução digital vai criar milhares de empregos e eliminar milhares de outros. No Brasil e em Pernambuco, o risco para muita gente não é o desemprego por causa da crise.

O risco é de desemprego mais duradouro, estrutural. Diagnosticar isso é apenas o primeiro passo.

Giovanni Sandes, jornalista e estudante de MBA, com especialização em Management of Technology & Innovation, na Ted Rogers School of Management, Ryerson University