Impressões sobre 100 anos

Do dia 3 de abril de 1919 até hoje, 3 de abril de 2019, passaram-se quase 81 anos do século 20 e 18 anos, três meses e três dias deste ainda jovem século 21. Até aqui, foram 36.161 dias acompanhados pelo Jornal do Commercio. Esse período foi – é – a história de uma humanidade que atingiu desenvolvimentos material, científico e tecnológico jamais sonhados em qualquer outra era. Mas que, por outro lado, se exterminou em guerras, crimes e terrorismo como nem nossos mais belicosos antepassados sonhariam. Trata-se do palco em que o sonho com utopias levou ao despertar com pesadelos totalitários. Uma era marcada pelo impressionante salto da comunicação: da então rudimentar imprensa escrita à consolidação da internet em todos os domínios da vida.

No século 20, a era das ideologias, por exemplo, o poder estatal foi o principal ator. Em 1919, o mundo celebrava o final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), primeiro conflito que opôs nações em larga escala e em que a tecnologia militar deu um salto, levando à morte de cerca de 40 milhões de pessoas.
A primeira capa do JC trazia como destaque as eleições presidenciais daquele ano no Brasil. O jornal foi às ruas a exatos dez dias do pleito, com Epitácio Pessoa contra Rui Barbosa. Pessoa venceu a eleição e governou o País até 1922.

Abria-se, no mundo, a cortina da tresloucada década de 1920, na qual costumes começaram a ser quebrados, aqui e alhures. A edição do JC do dia 2 de março de 1924 anunciava a chegada do então comportado Carnaval pernambucano com uma ilustração que tomava toda a capa, algo impensável para a época. Foi um período em que o consumo, ainda na esteira do otimismo pós-Primeira Guerra, floresceu. Isso até a Grande Depressão, em 1929, quebrar o planeta e preconizar o período de rearranjo institucional – com ênfase no fortalecimento dos estados nacionais – que culminaria na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

No fatídico 1º de setembro de 1939 em que o planeta despertou para o pesadelo de outro conflito mundial, o JC anunciou que “a machina de guerra allemã iniciou seu ataque à Polônia”. Nos cinco anos seguintes, a insanidade do projeto nazifascista de poder se alastrou, manu militari, pela Europa, e ameaçou impor uma nova ordem ao mundo. Muita destruição e morticínio depois, no dia em que as tropas aliadas desembarcaram sob fogo nazista nas praias da Normandia, os leitores do JC não tiveram que esperar pelo dia seguinte para saber da derrota anunciada de Adolf Hitler. Em 6 de junho de 1944 o jornal publicava, impressa sobre sua primeira edição, em letras vermelhas, um simbólico “Invadida a Europa”, e, logo abaixo, uma foto do general americano Dwight Eisenhower, que comandou o exército aliado na sangrenta invasão.

Derrotada a máquina totalitária nazifascista, o poder terminou sendo repartido em áreas de influência entre o Ocidente de democracias liberais, representado por EUA e Reino Unido, e uma potência totalitária, a União Soviética comunista. A disputa pela supremacia geopolítica do mundo teve uma consequência imediata: a Guerra Fria, com os dois polos numa corrida armamentista e tecnológica para mostrar quem daria as cartas no planeta.

A luta das duas potências e de seus aliados por nacos do mundo “não desenvolvido” originou um punhado de guerras localizadas, com as da Coreia (1950 a 1953) e da Indochina, principalmente a do Vietnã, que durou 19 anos; e no colonialismo de países da África e da Ásia.

No Brasil, esse período de acirramento ideológico e de xadrez geopolítico descambou na ditadura militar (1964-1985). Na América Latina também se sentiam os efeitos da querela que as duas superpotências do período travavam pela supremacia política no planeta. Pela proximidade geográfica, os EUA levavam vantagem na influência sobre os países das Américas Central e do Sul. Mas, desde a revolução socialista que sacudiu Cuba no início de 1959, a União Soviética passou a contar com um emblemático enclave ocidental, e a meros 200 quilômetros do maior antagonista.

Muita agitação institucional e de costumes depois, em 1964, o caldo político-cultural do Brasil fervilhava. No dia 1º de abril de 1964, o JC trazia a seguinte manchete: “Minas Gerais em armas contra Goulart. Segundo Exército já aderiu”. Tratava-se do deslocamento das tropas do Segundo Exército – atual Comando Militar do Sudeste – sob ordens do general Olímpio Mourão Filho, para depor o presidente João Goulart. Naquele mesmo dia, o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, era deposto, exilando-se, posteriormente, na Argélia. Foi o início de mais um rompimento democrático na história do Brasil, e que duraria 21 anos.

E foi no Recife que aconteceu um dos mais emblemáticos episódios da ditadura militar no Brasil. No dia 25 de julho de 1966, uma bomba explodiu em pleno saguão do Aeroporto dos Guararapes, no dia em que o então candidato à presidência, general Artur Costa e Silva, faria uma visita à cidade. “2 mortos e 14 feridos: o saldo do terrorismo” foi a manchete do JC no dia seguinte. No atentado, morreram o almirante da reserva Nelson Gomes Fernandes e o jornalista Edson Régis de Carvalho.

O mundo vivia uma época de negação e de mudanças, refletida nos protestos estudantis de Paris, em maio de 1968, e na luta pelos direitos civis da população negra, nos Estados Unidos. No Brasil, o regime militar iniciava seu período mais cruento, com a promulgação do Ato Institucional Número 5. Com a manchete “Costa edita ato e ordena recesso do Congresso”, no dia 14 de dezembro de 1968, o JC trazia, em sua capa, a íntegra do AI-5. O decreto deu o pontapé inicial à repressão mais pesada do regime, com a cassação de direitos políticos e intensificação de prisões, tortura e mortes. Ao mesmo tempo, se intensificava a luta armada da esquerda, que também gerou assassinatos e sequestros.

Aquele que no imaginário popular é o maior feito do período mereceu uma capa exclusiva do JC. A chegada do homem à lua foi assim anunciada: “Homem na Lua! A realidade de um sonho”, seguida do texto: “Cumprindo uma longa série de previsões, muitas de ordem mitológica, o homem chega à Lua (…). Este é, na verdade, o feito do milênio, que Julio Verne previu com riqueza de detalhe, dizendo até que a expedição sairia da Flórida”. A capa faz uma referência ao romance Da Terra à Lua, que o escritor francês publicou em 1865 (nada menos que 104 anos antes), em que três pessoas se lançaram em um foguete ao satélite da Terra.

Na segunda metade dos anos 1970, o regime militar já era um cavalo sem fôlego no meio de uma corrida. O milagre econômico tinha ido a pique e a gigantesca estrutura estatal erguida pelos militares – foram, ao todo, 47 estatais criadas no período dos fardados – dava sinais de que seria de difícil sustentação. Era chegada a hora da repatriação dos exilados políticos, as conversas para a anistia e a transição democrática. Em 16 de setembro de 1979, Miguel Arraes voltava do exílio, e o JC trazia a manchete: “Arraes chega e Maciel espera colaboração”. Destacava a fala do então governador de Pernambuco, Marco Maciel: “Espero que esteja voltando disposto a colaborar, não só com o aperfeiçoamento político-institucional, mas com o desenvolvimento brasileiro”. Arraes seria eleito para mais dois mandatos como governador: de 1987 a 1990 e de 1995 a 1998.

A primeira – e única – visita de um papa ao Recife também foi destacada pelo JC. “Papa no Recife pede justiça para camponeses”, era a manchete do dia 8 de julho de 1980, no dia seguinte à homilia feita pelo Papa João Paulo II no estacionamento da Ilha Joana Bezerra, na área central do Recife, para um público estimado em 250 mil pessoas. Em 1984, o regime militar respirava com a ajuda de aparelhos, e a movimentação por eleições livres atingiu o ápice com o célebre comício pelas Diretas Já na Praça da Sé, em São Paulo, assim noticiado na capa do JC: “Eleição direta reúne 200 mil pessoas”. Mas o que o Brasil teve foi o pleito para presidente decidido pelo Colégio Eleitoral, em que o ex-governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, foi vitorioso; no entanto, por complicações de saúde após uma cirurgia, ele faleceu sem conseguir assumir o mandato. Em seu lugar, como primeiro presidente não-militar em 21 anos, assumiu o vice, José Sarney. “São Paulo e Brasília reverenciam Tancredo e Sarney é efetivado na Presidência” foi a manchete do dia 23 de abril de 1985, dois dias após a morte de Tancredo.

“Em vigor, a carta da liberdade”. Foi assim, no dia 6 de outubro de 1988, que o JC noticiou a promulgação da oitava constituição brasileira, que encerrava o período militar prevendo eleições diretas para presidente no ano seguinte. E foi em 1989 que um dos mais icônicos eventos do século aconteceu. No dia 10 de novembro, o Muro de Berlim, um dos símbolos da cisão entre democracia e totalitarismo, começou a ruir. Em sua capa, o JC ilustrou: “Muro da vergonha: agora o caminho da liberdade”. “Numa decisão histórica, tomada ontem, e que surpreendeu o mundo, a Alemanha Oriental (comunista) anunciou a abertura do Muro de Berlim e outros postos de fronteira”. O muro dividiu, por 28 anos, a Alemanha em duas. Naquele ano, o ex-governador de Alagoas, Fernando Collor de Melo, derrotou o líder sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva e foi o primeiro presidente eleito pelo voto popular depois do regime militar. Dois anos, um Fiat Elba e alguns escândalos depois, renunciou ao mandato e deixou a Presidência para o vice, Itamar Franco. “Collor, enfim, deixa o poder. Itamar acena com novo tempo” era a manchete do penúltimo dia do ano, 30 de dezembro de 1992.

No dia 1º de julho de 1994, o JC anunciava o início da circulação do real e o fim do cruzeiro como moeda nacional. Naquele dia ainda de incertezas, o JC teve os preços estampados em real (R$ 0,70) e em cruzeiros (R$ 1.925,00). O plano econômico do qual a nova moeda foi o principal pilar conseguiu controlar a inflação e foi o principal esteio da eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência, inaugurando um ciclo reformista de centro-esquerda na política nacional. No mundo desenvolvido, massificava-se cada vez mais o uso da computação doméstica, num prenúncio da revolução digital que varreria o planeta com a internet anos à frente.

Os cem anos entre 1919 e 2019 também têm a marca do inchaço populacional. Foi a época em que a humanidade proliferou com nunca. O planeta saiu de 1,6 bilhão de pessoas em 1920 para 7,4 bilhões, dados de 2015. No Brasil, a população setuplicou: saiu de pouco mais de 30 milhões, no Censo de 1920, para uma projeção de 207 milhões este ano. A expectativa média de vida no mundo era de 42 anos em 1920, e em 2016 saltou para 72 anos, segundo o Banco Mundial. Mas, no mesmo compasso em que povoou a Terra, a humanidade se exterminou como nunca. Foram 56 milhões de mortos apenas nos seis anos da Segunda Guerra Mundial, e 60 milhões durante os regimes comunistas de Mao Tsé Tung, na China (1949-1976), e de Josef Stalin, na União Soviética (1924-1953).

O colapso do regime comunista em sua forma centralizada e totalitária acabou a Guerra Fria e marcou um final de século em que as guerras foram rareando. Mas a humanidade resolveu continuar a se matar, só que de outras formas. O período final do século 20 e esse jovem século 21 são marcados pela ascensão, em larga escala, do crime e do terrorismo.

É quando voltamos a nosso passeio cronológico para falar de como terror e criminalidade entraram pra valer no curso da história. No dia 11 de setembro de 2001, um estupefato mundo assistiu, ao vivo, a terroristas jogarem dois aviões contra as torres do World Trade Center, em Nova York, nos EUA, matando 3 mil pessoas e desencadeando outra guerra, desta vez no Afeganistão.

Metrô de Madrid (2004), escola de Beslan, na Rússia (2004), atrocidades do grupo Boko Haram na Nigéria (2009), massacre da redação da revista Charlie Hebdo, em Paris (2015) e em Nice, também na França (2016), além dos ataques do Estado Islâmico no Oriente Médio. O terror marca de forma indelével essas primeiras quase duas décadas do século. Já nas nações da periferia do mundo economicamente desenvolvido, a criminalidade escalou, movida pela popularização sem precedentes do tráfico e consumo de drogas, e por governos lenientes com relação ao assunto.

O século 21 ainda é jovem (exatos 18 anos, três meses e três dias), mas o Brasil já viu muito nesse período – tudo devidamente registrado pelo JC. Testemunhou, por exemplo, a ascensão à Presidência, em 2003, de um líder cunhado no sindicalismo – Lula. Viu anos de bonança econômica e um ciclo de distribuição de renda virarem a maior recessão da história, dragados pela torrente da corrupção oriunda do próprio governo. Viu nascer a Operação Lava Jato (2014), cuja rede arrastou políticos, provocou o impeachment da primeira mulher a presidir o País – Dilma Rousseff (2010 a 2016) – e a prisão do mesmo Lula, num dia 7 de abril de 2018 em que o Brasil prendeu a respiração.

Em Pernambuco, o período foi marcado pela ascensão de Eduardo Campos ao governo do Estado (2007-2014) e por sua trágica morte, no dia 13 de agosto de 2014, em um acidente aéreo em que também faleceram assessores e os pilotos da aeronave. E, chegando aos dias de hoje, pela vitória, no pleito de 2018, de um candidato tido como azarão, que superou um atentado em que quase perdeu a vida – o atual presidente da República, Jair Bolsonaro.

Até aqui tem sido uma jornada e tanto. De conquistas, como os direitos civis, o voto para as mulheres, da afirmação das democracias e derrocada dos totalitarismos. E de derrotas momentâneas, como a criminalidade, além de fome, violência e pobreza ainda grassando pelo mundo.
O futuro, por definição, é uma incógnita. A forma como a notícia será consumida, idem. Mas uma coisa é certa: o JC estará lá.