Luiz Carlos Villalva: "1817 foi a mais forte de contestação à ordem política"

O historiador paulista da Universidade Federal de Minas Gerais ressalta como até a memória da Revolução de 1817 foi vista como um fantasma e um perigo durante a Independência

Por Diogo Guedes

"A Revolução de 1817 foi o movimento mais forte de contestação à ordem política ocorrido no Brasil antes da Independência", vaticina sem medo o historiador Luiz Carlos Villalva. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e estudioso de outros movimento coloniais, ele destaca a importância do movimento pernambucano na história brasileira. Nesta entrevista, ele aborda o esquecimento da revolução, as suas contradições e ressalta: até hoje parte do País considera indigesto celebrar 1817.

JORNAL DO COMMERCIO - Por que a Revolução de 1817, ainda mais fora de Pernambuco, é tão pouco conhecida e valorizada? Como dimensionar a importância dela?


LUIZ CARLOS VILLALVA – Estas suas perguntas são muito importantes. Neste momento, é uma das minhas preocupações de pesquisa. Eu comecei uma pesquisa sobre a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana, a Revolução Pernambucana e a Independência nos jornais do Império do Brasil. O objetivo principal é entender os porquês do esquecimento que afeta em especial a Revolução de 1817. Quero encontrar ao menos algumas pistas sobre isso. O significativo é que a Revolução era muito lembrada no período que vai entre sua ocorrência e fim do primeiro reinado. Nos idos da Independência, ela era frequentemente citada. E citada como um fantasma, como um perigo. Talvez isto seja uma chave para entender sua pouca valorização nos dias de hoje, o que, para lhe ser muito franco, me causa um desconforto muito grande, por pelo menos seis motivos: ela foi o movimento mais forte de contestação à ordem política ocorrido no Brasil antes da Independência, contra o absolutismo, mobilizando gentes de perfis sociais distintos, das elites aos populares (o ouvidor e revolucionário Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva falava em algo que chegava a cifra de 30 mil homens integrando tropas), havendo participação até de escravos ; ela anunciou algo que é crucial num processo de Independência, que é o antagonismo entre o "povo colonizador" e o "colonizado"; ela, exceto por seu caráter republicano e por sua proposta de abolição lenta e gradual da escravidão, antecipou as linhas que seriam seguidas com a Independência e seu apelo ao constitucionalismo ; ela implicou uma contestação, por parte das Capitanias do então Norte, da supremacia do Centro-Sul; ela teve grande repercussão internacional; e ela foi motivo de uma repressão brutal. Estes seis elementos são indicativos de sua importância. Eles fornecem pistas para se entender seu esquecimento. Grosso modo: não convém celebrar a Revolução de 1817, que pôs em xeque uma ordem comandada do Centro-Sul do Brasil e que a esta região beneficiava, em detrimento do Norte! Não convém celebrar um movimento que, ao contestar a ordem referida, ameaçava a “integridade” do Brasil.


Quero ressaltar aqui algo muito importante, identificado pela historiadora Maria Odila Silva Dias, um processo que se iniciara em 1808, com a transferência da corte para o Rio de Janeiro, processo que trazia danos ao Norte: o processo de “interiorização da metrópole”. Ou seja, o Rio de Janeiro e as capitanias do Centro-Sul passaram a exercer o lugar de Lisboa e de Portugal, carreando e lucrando com a espoliação do Norte. No Rio, constituiu-se um círculo de nobres, burocratas, militares, grandes negociantes, funcionários públicos de nível inferior, grandes proprietários de Minas, S. Paulo e Rio de Janeiro, que usufruía das vantagens da proximidade com o monarca, obtendo cargos, desenvolvendo negócios lícitos e ilícitos, alcançando privilégios.


Este processo de “interiorização da metrópole”, por sua analogia com o que se passa hoje, talvez explique a falta de comemorações efusivas aos 200 anos de 1817! Com Brasília sendo o epicentro de uma espoliação não mais propriamente colonial, mas patrimonialista (isto é, grosso modo, a colheita de benefícios através da confusão entre público e o que é privado, o uso lícito e ilícito da coisa pública para fins particulares) e anti-popular, torna-se indigesto celebrar a Revolução de 1817, que, embora não tendo um caráter propriamente democrático ou popular, sacudiu violentamente a ordem patrimonial, absolutista e anti-Norte comandada do Centro-Sul do Brasil.

bandeira de pernambuco em 1817

JC – Você fala da Revolução de 1817 como uma "encruzilhada de desencontros" para o Império Português. O que o termo ressalta? De que forma o movimento ameaçou a ideia de nação da coroa?


VILLALVA – Aos 30 de abril de 1817, já deposto e preso na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, o então ex-governador de Pernambuco, muito lamentava o dia 06 de março. Em suas várias cartas dirigidas a autoridades superiores da monarquia sob D. João VI, Montenegro sempre voltava àquele dia que fora o pior da sua vida, assim o tomando. É um personagem interessante, em nada imbecil. Suas cartas parecem fazer jus à fama de pão duro e de não ter o perfil que se esperaria de alguém que era a suprema autoridade civil e militar de uma capitania, seu governador. Ele mesmo dizia-se menos um militar e mais um homem das Letras. Mas voltando à carta de 30 de abril, nela ele reconheceu sua ignorância dos fatos que cercavam a gestação do movimento de 1817. Ele procurava explicar sua derrota pela ignorância desses mesmos fatos, ignorância esta que era vista por alguns como indício de sua incompetência. Ele identificava a relação entre o movimento e o que hoje denominamos constituição de uma esfera pública (a combinação de locais de encontros, do desenvolvimento de debates literários e políticos, de usos de impressos, manuscritos e informações orais, por pessoas privadas, exercitando-se uma autonomia em relação à Coroa) : "Se eu tivesse algum motivo para duvidar da fidelidade dos Pernambucanos, ou se me tivessem sido denunciadas as sociedades maçônicas e os ajuntamentos suspeitosos em casa de Domingos José Martins, Antônio Gonçalves da Cruz e do Padre João Ribeiro, eu teria dado com tempo todas as providências assim como as dei, quando se receou que os escravos do Recife se levantassem, e quando destruí os projetos sediciosos dos escravos das Alagoas”. O que quero demarcar com o uso dessa fala de Montenegro são duas coisas. Primeiramente, que a constituição de uma esfera pública em Pernambuco levou a reflexões e à orquestração da Revolução, sendo esta esfera um local de “encontros”, concretos e metafóricos: isto é, ambientes, veículos de transmissão de ideias e debates que permitiram a formulação de um projeto de Revolução, por parte de diferentes atores sociais. Em segundo lugar, o ex-governador meio que já apontava para um problema que aquelas conversas travadas no seio da maçonaria em casas de particulares (e em outros espaços da Capitania) não foram capazes de resolver de um modo consensual: o que fazer com os escravos, cuja insurreição não era temida apenas por Montenegro, mas pelos membros das classes senhoriais do Brasil inteiro, que se amedrontavam com a possibilidade destas terras virarem um imenso Haiti, onde no início dos anos 1790 deu-se uma violenta insurreição de escravos.


Montenegro, ainda como governador, os revolucionários de 1817 e a própria imprensa da época lidavam com outro desencontro, tendo um ponto de convergência: percebiam os conflitos entre “portugueses”, de um lado, e “brasileiros” e “pernambucanos”, de outro. Dias antes da Revolução, o governador, em Ordem do Dia, ressaltava a “unidade”. A imprensa fala da animosidade como origem da Revolução. Correio Braziliense, por exemplo, lá de Londres, identificou a "causa próxima" da Revolução, que "foi um rumor, que se levantou, sem o menor fundamento, de que havia entre os habitantes daquela cidade certa rivalidade e ódio dos Portugueses Europeus, com os Portugueses Brasilianos”. Aos 09 de março de 1817, o governo revolucionário, por sua vez reconhecia a existência da animosidade entre “portugueses” e “brasileiros”, recuando-a à transferência da Corte em 1807-1808 e atribuindo-a a “espíritos indiscretos”, que principiaram “a espalhar algumas sementes de um mal entendido ciúme, e rivalidade, entre os filhos do Brasil, e de Portugal, habitantes desta Capital, desde a época, em que os encadeamentos dos sucessos da Europa entraram a dar ao continente do Brasil aquela consideração, de que era digno, e para o que não concorreram nem podiam concorrer os Brasileiros”. O governo provisório, ademais, tomou como improcedentes tais sementes de discórdia, relembrou o socorro dado pelos pernambucanos ao Príncipe quando ainda se encontrava no Atlântico e classificou como gesto de gratidão de D. João elevar o Brasil à condição de Reino. Embora reconhecesse que aquelas sementes foram “nutridas por mútuas indiscrições dos Brasileiros e Europeus”, culpava implicitamente o governo por fortalecê-las. Mesmo assim, ao final da Proclamação, o governo, mostrando sua dificuldade de romper com a identidade portuguesa, declarava: “A pátria é a nossa mãe comum, vós sois seus filhos, sois descendentes dos valorosos lusos, sois portugueses, sois americanos, sois brasileiros, sois pernambucanos”.


Eu sei que é muito difícil para nós, hoje, brasileiros, pernambucanos (ou paulista-mineiro, como eu), vermo-nos como "portugueses". Mas nos idos de 1817 e até mesmo à época da Independência, três identidades combinavam-se : a mais ampla, de "português", que englobava a todos (certamente, a escravaria africana não se via como tal !) ; a de "brasileiros", "americanos", "brasilienses" ou "brasilianos" (que correspondia aos naturais da América portuguesa) ; e as identidades locais (de paulista, pernambucano, baiano, alentejano etc.). Antônio de Morais Silva, que tinha um engenho em Pernambuco e que foi nomeado Conselheiro pelo Governo Provisório, personagem que condenou a Revolução, lembrava sua identidade de "carioca". O que claramente já existia em 1817? Estas identidades estavam começando a entrar em conflito, firmando-se a oposição entre “portugueses europeus” e “brasileiros” e as identidades locais da América portuguesa. Este é outro desencontro. Este desencontro ameaçava a unidade da nação portuguesa. A palavra nação, em português, na época, tinha um significado que transitava entre, de um lado, a coletividade formada por súditos de um mesmo príncipe e, de outro, a coletividade que, para além desta sujeição, tinha algo cultural em comum (costumes, língua etc.). O desencontro ameaçava o poder do Rei português, a unidade dos seus súditos instalados em quatro continentes do Globo (América, Europa, África e Ásia).


Um terceiro desencontro que é sempre bom lembrar refere-se ao que opunha o Norte ao Rio de Janeiro. As capitanias do Norte se sentiam prejudicadas. É importante lembrar que Recife, que não tinha iluminação pública, pagava pela iluminação do Rio de Janeiro. Os produtos de exportação do Norte tiveram suas taxas alfandegárias elevadas depois da vinda da Corte para sustentá-la no Rio de Janeiro. Este desencontro, a posição contestadora de Pernambuco, iria lhe custar caro no curso dos anos. Não custa lembrar as perdas de território posteriores em benefício da Bahia e de Minas Gerais, bem como a autonomia de Alagoas.


O historiador Evaldo Cabral de Mello, a partir de Tollenare, menciona outros desencontros. Inicialmente, os revolucionários excluíam o povo (armado sem saber para quê), não falavam em República e pareciam não se opor ao rei. José Luís de Mendonça: não era contra a monarquia, não soubera da conspiração e não era verdadeiramente revolucionário.

O significativo é que a Revolução era muito lembrada no período que vai entre sua ocorrência e fim do primeiro reinado. Nos idos da Independência, ela era frequentemente citada. E citada como um fantasma, como um perigo. Talvez isto seja uma chave para entender sua pouca valorização nos dias de hoje, o que, para lhe ser muito franco, me causa um desconforto muito grande.

JC – Quais os principais avanços e quais as grandes contradições que o movimento trazia em si?


VILLALVA – O movimento trazia um ideal que combinava republicanismo, constitucionalismo, liberdade religiosa e liberdade de imprensa. Tudo isso representava um grande avanço em relação à ordem do Antigo Regime português (não digo “colonial”, porque, desde 1808 e, ainda, com a elevação do Brasil à condição de Reino, fica difícil usar este adjetivo). O problema da escravidão, porém, não tinha uma avaliação consensual. Neste ponto havia contradições. O governo era heterogêneo, reunindo moderados, como o representante da magistratura, a radicais, como o representante do comércio e o mulato Pedro Pedroso (defensor do “haitismo”).


Além disso, é preciso considerar a permanência de um ideal aristocrático, calcado na ideia de privilégios, por parte de alguns revolucionários. Não se deve esquecer que, em Pernambuco, havia um traço peculiar, que só encontrava algo similar talvez na Bahia: uma aristocracia. No resto do Brasil, fica difícil falar em sua existência. Dou risada, por exemplo, quando vejo membros das elites de S. Paulo de hoje fazerem menção à expressão “paulista de quatrocentos anos”: ora, paulista de quatrocentos anos é mameluco, o que nada tem a ver com “aristocracia”. Pernambuco, não. Na capitania, havia um grupo, com longa história, de tradições, lutas, laços de unidade entre seus membros e de oposição a pessoas de outras origens, claramente aristocrático, cioso de privilégios. Isso se evidenciou quando se discutiu sobre como deveria se fazer a distribuição de alimentos entre os revolucionários presos na Bahia. O capitão Boaventura Ferraz, ao ser encarregado da alimentação dos 103 prisioneiros ligados ao movimento de 1817 que se encontravam em Salvador, solicitou-lhes, por meio de um bilhete, que se dividissem “em classes”, enviando-lhes uma “lista com as necessárias declarações” para melhorar a alimentação. Enviado o bilhete para o capitão-mor de Olinda Francisco de Paula Cavalcanti e o seu irmão Luís Francisco, senhores de engenho, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, paulista, convocou um conselho, para deliberar sobre o assunto, tendo o mesmo deliberado que “a palavra – Classe – equivalia a Jerarchia”. Na definição da hierarquia, os detentos usaram como baliza a divisão social que foi fixada pelas Cortes de Lamego – clero, nobreza e povo. Os detentos foram divididos em três classes, segundo um critério militar: na 1a classe, figuravam os detentores das patentes de major para cima, nas tropas de 1a, 2a e 3a linhas, somando-se a esses os desembargadores, magistrados, letrados, cônegos e vigários; na 2a classe, enquadravam-se os que se encontravam nos postos de cadete a capitão, nas tropas de todas as linhas, os clérigos simples, os magistrados não-letrados e oficiais da fazenda; por fim, na última classe, ficavam todos os “que não cabiam nas duas primeiras”.

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