30 anos de aids em pernambuco
Vida renovada apesar da aids
Quem disse que os soropositivos estão condenados à solidão, à doença e às perdas? A geração que nasceu infectada ou que se descobriu muito jovem portadora do HIV toca sua vida como qualquer pessoa do planeta, afinal não somos totalmente sãos. A limitação e a diferença fazem parte da trajetória e do crescimento de todo ser humano. Trinta anos depois do primeiro caso de aids em Pernambuco, fomos atrás desses imposithivos, gente que se impõe à dificuldade chamada vírus da imunodeficiência humana.
Soropositivos infectados em momentos diferentes, André Schebba, 37 anos, e Nance Ferreira, 33, resolveram dar mais espaço ao amor e construir uma família. Ele era solteiro e ela trazia uma filha do primeiro casamento. A história do casal não parou por aí. Com carga viral em baixa e sistema imunológico fortalecido, veio o desejo de trazer mais uma vida para o lar. Geraram, então, uma filha, que nasceu livre do vírus.
“A gente tinha muita expectativa animadora, mas havia sempre um receio, uma ansiedade. Graças a Deus a felicidade veio completa quando todos os exames dela eliminaram a possibilidade de ter herdado o HIV”, diz Scebba. Ele e Nance levam uma vida normal como qualquer casal. Trabalham juntos com design gráfico e acompanham o crescimento das filhas, uma adolescente e outra de 4 anos. Além disso, criaram um grupo na Igreja Batista de apoio a outras pessoas que vivem e convivem com o vírus da aids.

Retomar os sonhos, fazer planos, construir famílias e realizar a maternidade ou paternidade apesar do HIV têm sido constantes. Gerlane Alves, coordenadora do serviço de referência em aids do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), no Recife, onde o casal faz acompanhamento, revela, feliz, que seus meninos chegaram à fase adulta. De 23 assistidos desde a infância, que herdaram o vírus da mãe, três estão na universidade e quatro fazem cursos técnicos. Os demais estudam o médio ou estão trabalhando. Juntando esses e outros que foram chegando ao serviço ao longo das últimas décadas, 14 moças e três rapazes constituíram família. Entre os filhos gerados pelas mulheres, apenas dois nasceram infectados. “Elas tinham parado o tratamento contra o HIV”, diz a pediatra.
Casais sorodiscordantes também encontram outras formas de viver a paternidade. Daniel, 25 anos, HIV positivo desde o nascimento, está partilhando a guarda do filho adotivo da sua mulher. “O mais importante é o amor que nos une. Coincidentemente, antes de conhecê-lo já havia cuidado de uma criança soropositiva na creche onde trabalho”, conta Marta.
Nova geração pode ter vírus resistente
O médico Edvaldo Souza, professor da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), pediatra e imunologista do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), tornou-se uma referência no tratamento de crianças com aids. Pesquisador, alerta que o vírus afeta o desenvolvimento cognitivo dos pequenos. A cura funcional, anunciada este ano nos Estados Unidos, ainda requer muito estudo, acredita. Ele vê com otimismo o nascimento de garotos livres do vírus, mesmo tendo pais HIV positivos. Mas preocupa-se quando mães abandonam o tratamento antiviral e geram filhos infectados, abrindo a guarda para vírus resistente a medicamentos que acaba sendo transferido aos bebês.
O ideal, segundo Souza, é que já se tenha o diagnóstico da mãe no pré-natal. Sendo a mãe positiva, ela deve tomar três drogas. No parto deve-se evitar ou diminuir a exposição da criança a sangue e outros líquidos. O bebê não pode ser amamentado para evitar a transmissão do vírus pelo leite materno. Se as três etapas forem feitas adequadamente, o risco de transmissão vertical de 25% cai para menos de 2%.
"Estamos vivendo um cenário de excelência, com diminuição frequente do número de infectados. Infelizmente, a cobertura de testagem no pré-natal não é de 100% e mulheres que não fazem pré-natal só descobrem na hora do parto e com chances de contaminar o filho", diz Edvaldo Souza

"Os casos que temos de infecção são de mães que pararam o tratamento contra o HIV. Pode haver, então, transmissão de um vírus com múltipla resistência, limitando, assim, o tratamento. O aconselhamento de adolescentes HIV positivas em relação à gestação e cuidados necessários nessa fase é fundamental."
A era do câncer gay
Houve um tempo em que a aids era um enigma rodeado somente de medo e preconceito. Quem viveu essa fase, como o ativista Wladimir Reis, enfrentou dúvidas e solidão. Ele conta, em vídeo, as impressões da fase inicial da epidemia, quando foi rejeitado pelos amigos. E fala também dos problemas atuais, quando as rejeições passaram a ser sutis.
O primeiro caso de aids em Pernambuco foi diagnosticado em novembro de 1983. Tratava-se de um cabeleireiro, morador do Cabo de Santo Agostinho. A médica e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, Ana Brito, chegou a ver o paciente no Hospital de Santo Amaro, quando ela fazia mestrado em medicina tropical. "Ele desenvolveu múltiplas infecções oportunistas, como candidíase e pneumocistose (doenças causadas por fungo)", conta.
Segundo Ana, a epidemia chegou por meio de relações sexuais, até hoje predominantes em Pernamhuco como forma de transmissão do HIV. O uso de drogas injetáveis era e continua sendo um fenômeno pouco frequente entre nós, conta.
"A outra forma, por transfusão de sangue, nunca foi um problema grave no Estado. A boa triagem para hepatites e outras doenças de transmissão sanguínea (Chagas, sífilis) feita no Hemope já garantia um sangue mais seguro, mesmo antes de dispor de exames para detectar o HIV, incluídos na rotina a partir de 1986/87 em todo o mundo. Os primeiros casos de transmissão sanguínea, como o do garoto Rachid, por transfusão realizada num banco privado, levaram ao fechamento desses serviços. Os hemofílicos não foram tão acometidos pela aids como os do Rio de Janeiro, onde o hemocentro público mantinha captação baseada no pagamento de “voluntários”, constituídos por pessoas em condições de grande vulnerabilidade social, como moradores de rua e usuários de drogas", Ana Brito
Até 1994 não havia droga potente contra o vírus. Qual era o objetivo do programa de aids? Fazendo o enfrentamento na prevenção, responde a pesquisadora, que considera esse o sendo o eixo central. Por mais que tenha sido desenvolvida tecnologia diagnóstica e terapêutica, argumenta, as ações de controle só serão capazes de inibir o crescimento de novos casos se houver mudança comportamental.
"A aids tem uma causa biológica, um vírus, mas a sua forma de expressão é sobretudo decorrente da forma como a sociedade está organizada, e de como lidamos com o preconceito, a intolerância e a falta de respeito aos direitos humanos. Já se fala mais abertamente no país sobre sexo. Coisa impensável há cerca de 20 anos. Assistimos debates até em novelas sobre relações homoafetivas, em que o trejeito identificado como afeminado é mal absorvido pela sociedade, é fortemente discriminado", Ana Brito
Nos anos inciais da epidemia Ana lembra de ter visto placas nas ruas dizendo "Fora câncer gay", embora em 1984, os conhecimentos científicos já tivessem desmitificado o "câncer gay" e a "doença dos 4 Hs" (haitianos, homossexuais, usuários heroína e hemofílicos).
Wladimir Reis, por exemplo, teve que omitir a condição de homossexual para obter aposentadoria quando adoeceu.

Os primeiros casos de aids no mundo são de 1977 e 1978, no Haiti, Estados Unidos e África. No Brasil o primeiro doente seria de 1980, mas só oficialmente reconhecido dois anos mais tarde.
O novo luto de Alaíde
A aids revelou, logo nos primeiros anos, fragilidades da assistência à saúde, entre elas o pouco controle sobre a captação de sangue e condições sanitárias de hospitais antes e depois do SUS. Vítimas pequeninas como o garoto Rachid, vencido pelo HIV no início da década de 90, aos 8 anos de idade, pagaram caro por esses erros. Alaíde, a mãe, lutou praticamente sozinha desde a infecção dele, contaminado numa transfusão de sangue, e depois, com sua morte, levou a briga adiante, emprestando a voz e a coragem para mulheres sem a mesma força. Agora é forçada a recolher seu sonho duradouro de orientar, assistir social e psicologicamente famílias que vivem e morrem com o HIV. Em três décadas de luto e luta, foi testemunha da violência, abandono e desestruturação social que também cercam pais e filhos soropositivos.
"Quando olho para trás nem acredito que passei por isso, foi um fardo muito grande”, diz a ex-recepcionista de consultório dentário que deu voz ao grito de outras mães vítimas da aids. Ela fundou o Grupo Viva Rachid, que por duas décadas funcionou como referência no Brasil para crianças com HIV e aids. Apoiava pai ou mãe sobrevivente, tios, uma avó ou mesmo uma família substituta para devolver a meninos e meninas o lar desfeito. A organização está fechando as portas por falta de apoio institucional.

Felizmente, as transfusões de sangue contaminado representaram pouco em Pernambuco, em torno de 0,2 a 0,3% dos casos de aids. No entanto, as crianças continuaram sendo vítimas, pela transmissão na gestação, parto e amamentação. De 1987 até outubro deste ano Pernambuco contou 511 crianças com aids de zero a menos de 10 anos. Quase 50% já morreram.
Uma das vítimas de sangue contaminado no Brasil foi o sociólogo Herbert de Souza, que morreu em 1997. O coordenador da Ação da Cidadania Contra a Fome era hemofílico, assim como seus irmãos Henfil e Chico Mário.

O sofrimento aproximava todo mundo
Antes de chegar ao Hospital Correia Picanço, a hematologista Izabel Guimarães vivenciou a tarefa difícil de comunicar e orientar doadores de sangue com resultado de teste positivo para HIV. Consolou mais que medicou na primeira década da epidemia, guardou segredos e até hoje não apaga da memória a cena de uma das primeiras mulheres que morreram no Estado, agarrada as suas mãos. "A perda era dolorosa. O HIV, nessa fase, mostrou a noção exata do limite, que você tem mais a dar que o remédio. Havia uma proximidade entre médico, paciente e família. A gente sofria a perda também, não era fácil. O sofrimento aproximava todo mundo".
"Mesmo antes da aids eu fazia o ambulatório de sorologia dos doadores no Hemope. Não é fácil dar a notícia quando o teste é reagente. Muito pouco se sabia, então muito pouco se tinha para dizer. Geralmente pedíamos para que o teste fosse repetido, embora já tivesse sido repetido em duas amostras. Encaminhava ao Correia Picanço. Era difícil para o profissional e para quem estava ouvindo", relata.
Segundo ela, muita gente desconhecia o que era HIV. "Explicava o que se sabia, com toda a restrição da época. Em Palestras, a gente disse muitas coisas que hoje não fazem o menor sentido, porém era o que se tinha conhecimento. Dizia-se, por exemplo, que não se pegava no sexo vaginal. Tentava-se se abrandar o máximo. Era um diagnóstico impactante. Até hoje acompanho ex-doadores. Era um momento de muito sofrimento para as pessoas. O primeiro impacto não era a morte, mas a ideia do sofrimento numa pessoa sadia que estava tendo diagnóstico de uma doença sem cura, que matava", conta.

Tão próxima, Izabel chegou a ser madrinha de casamento de paciente. "Lembro de uma psicóloga, uma das primeiras mulheres com HIV. Ela morreu no Hospital Oswaldo Cruz, de mãos dadas comigo. Durante o período em que esteve internada, me dizia: ' não me deixe perder a dignidade, ser objeto de curiosidade, não quero estar despida, não gostaria de morrer abandonada'. Lembro de rezar junto com eles quando estavam partindo (lágrimas)"
A vez das mulheres
Em 21 de novembro de 1996 J.S. estava tão eufórica que queria gritar para o mundo a condição sorológica dos filhos gêmeos de um 1 ano e 4 meses, livres do HIV. Com mais um resultado de exame negativo nas mãos saiu abraçando outras mães e funcionários do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), no bairro dos Coelhos, Centro do Recife, onde as crianças estavam sendo acompanhadas. Aceitou até conceder entrevista para o JC. Dezessete anos se passaram rápido na vida dessa mulher. Os filhos agora têm 18 anos e ela, mais de 6.200 dias de luta em defesa de muitas bandeiras.
“Eu temia que meus filhos estivessem infectados, meu medo morreu ali, não havia mais aquela possibilidade. Quando saiu mais um resultado negativo, dei um pulo e comecei a me interessar por outras coisas, outras vivências, eu fui em busca de conhecimento, para compreender e viver melhor com essa sorologia”, conta agora.
Frequentando uma organização não-governamental de apoio a pessoas que vivem com aids, ela começou a se interessar pelo ativismo naquela segunda metade da década de 1990.
Sexo feminino responde por 40% dos casos
A feminização da aids começou na mesma época do lançamento do coquetel. Hoje o número de casos em mulheres representa quase 40% do total registrado em Pernambuco. O tratamento combinado com três ou quatro drogas aumenta a sobrevida, diminui a propagação do vírus e recupera o sistema imunológico para receber uma solução futura. O médico Frederico Rangel, com 28 anos de experiência, afirma que serão beneficiados com a futura cura os que estiverem com as defesas em bom estado, daí a necessidade de cumprir o tratamento.
Entre o vício e o coquetel
Embora a indústria farmacêutica tenha progredido muito nos últimos anos, associando substâncias que antes eram tomadas isoladamente, não é fácil engolir pílulas e pílulas quando se está com fome ou dependente de uma droga pior. A travesti Cláudia Morena, soropositiva, dependente de álcool e usuária de outras substâncias, já parou o tratamento da aids várias vezes. Entre moradores de rua, o crack vem ajudando a pauperização da epidemia sem freio, conservando a menor sobrevida e o poder mortal da síndrome. Num grupo, aliás, que dificilmente se beneficiará da esperada cura terapêutica.
“Minha médica passa três comprimidos para tomar de manhã. Se eu não tenho nem um pão para comer, como é que vou ter coragem de tomar esses remédios? Eu passo o dia todo com fome, até minha sogra trazer um pacote de fubá”. O discurso é de Cláudia Morena, travesti, 36 anos, moradora do subúrbio da Zona Norte do Recife.
O médico Vicente Vaz confirma que a condição social tem uma grande importância,"até porque o acesso ao serviço de saúde, infelizmente no nosso País, está ligado à condição social. Os pacientes com condição desfavorável têm grande dificuldade de acesso ao serviço de saúde, ao tratamento, alimentação, informação, aos seus direitos, ao exercício da cidadania." Médicos de serviços públicos vão sempre encontrar essa dificuldade, a condição social interferindo no tratamento.
De volta ao começo: homossexuais mais expostos
Ter uma vacina ou remédio que acabe com a aids é um sonho cada vez mais próximo, mas ainda não é realidade. Real mesmo e alarmante é que grupos, antes mais expostos, voltaram a descuidar da prevenção. Especialistas na área observam um crescimento de casos entre gays jovens. O cenário torna-se sombrio porque muitos desses homossexuais masculinos adiam o diagnóstico ou, mesmo sabendo da condição de soropositivo, retardam a ida ao médico, temendo revelar para a família a orientação sexual e a situação de infectado.
Trinta anos se passaram e o medo do preconceito parece intacto nessa epidemia. De janeiro a outubro últimos, 21 adolescentes de 15 a 19 anos descobriram ser portadores da síndrome em Pernambuco. Outros 323 adultos jovens, de 20 a 34 anos, também entraram na mesma roda.
Pedro, com 19 anos, iniciou a vida sexual aos 14. É bonito, descolado e gay. Mas está magro e vem adoecendo repetidamente. Descobriu há dois anos que tem aids. “Foi complicado. Primeiro, passei um tempo sem coragem de fazer o teste. Depois, quando fiz e deu positivo, não sabia que atitude tomar, eu tinha apenas apoio de alguns amigos, não contei para minha família”
São Paulo foi pioneiro em programa de prevenção
A Secretaria de Saúde de São Paulo comemora 30 anos de criação do programa pioneiro que acabou inspirando o nacional. O Centro de Referência engloba hoje não só a parte de educação e comunicação, que cuida das campanhas, mas mantém o Disque Aids, que atende pessoas de todo o País pelo 0800 16 25 50 esclarecendo dúvidas, um pronto-atendimento, ambulatório e laboratórios de pesquisa.
A médica Marinela Della Negra, do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo, uma das principais referências em aids do País, afirma que é preciso responder claramente ao jovem, esclarecer suas dúvidas e falar de relação sexual e de uso de droga de forma enfática.
