O sexo como instrumento de dominação
"Branca para casar, mulata para f...., negra para trabalhar";
“Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos, a rapazes brancos já podres de sífilis das cidades”;
“Tem havido também muito Wanderley doido por negra”;
"Botina e mulher, só pretas;
“Só queria saber de mulecas;
“Indiferentes aos refinamentos do amor.”
Trechos extraídos de Casa-Grande & Senzala, 41ª edição, Rio de Janeiro, Record, 2000
Bianca tinha 13 anos e cerca de 24 quilos quando o policial quase a ergueu pelo pescoço. Apertava com força e repetia: “Eu vou te matar”. Não queria somente sexo oral. Desta vez, exigia penetração. Mas Bianca, apesar de vir trocando há algum tempo carícias sexuais por dinheiro, era – ainda é – virgem. O homem colocou uma arma na cabeça da menina, que se debatia. Conseguiu abrir a porta do carro e saiu correndo. Bianca é asmática e vinha usando crack há algum tempo, o que a debilitou ainda mais. O fôlego não foi suficiente e ela começou a passar mal. As outras meninas viram o que aconteceu e foram ajudá-la. Carol, 17, colocou a garota nas costas e correu para um posto de saúde.
(…)
Dois anos depois, a adolescente que salvou Bianca está sentada em uma pequena ponte, perto do local onde a menina foi quase estuprada. Tem agora 19 anos e está grávida. Sua ligação com o crack é tão íntima quanto explícita. Está muito magra, apesar da maternidade. São quase 21h do dia 22 de outubro e uma pessoa se aproxima dela, que se levanta.
– Ei, morena, quanto é?
– Pra transar é dez.
– Oxe, tu tá grávida?
– Tô, o que é que tem? Faço do mesmo jeito.
– Não, com grávida eu não quero não.
Carol calculava uns seis meses de gravidez, mas não tinha certeza. Desde que o bebê cresceu dentro dela, acha melhor permanecer agachada para não afastar possíveis clientes. É verdade que alguns a escolhem justamente por causa da barriga redonda (“tenho tesão em mulher grávida”), já outros não conseguem pagar uns trocados àquela moça que vai ser mãe em breve. É uma jovem cuja beleza é insistente, apesar do consumo quase diário de crack, apesar de ter sido historicamente maltratada, apesar de passar quase todas as noites da semana mantendo relações sexuais e às vezes sendo agredida por desconhecidos, ao lado de um canal repleto de esgoto e lixo, o canal usado como símbolo da nova administração pública da cidade, no início deste ano. Naquele dia (4 de janeiro), limparam tudo. O lixo voltou. Porque, é claro, não adianta tirá-lo de um canto específico quando tudo está cercado por ele.
As meninas passam as noites ali, no local conhecido como Matagal, onde uma árvore grande serve de apoio para a prática do sexo. Fica próxima ao pontilhão, no cruzamento da Avenida Norte e Avenida José dos Anjos, na Tamarineira. Sob essa árvore são vistos homens que só se interessam por um programa rápido ou “serviço completo”. Outros preferem algo menos exposto e pedem para ir até um motel. São vistos também policiais fardados como aquele que tentou estuprar Bianca, homens que, a pretexto de estar coibindo a exploração sexual na área, contribuem com ela. Pedem para ver os peitos e o sexo das meninas (“vai, abre as pernas”), pedem sexo oral. Com eles, são obrigadas a transar ou se exibir de graça, sejam maiores ou menores. Não recebem dos “caraíbas gulosos de mulher”, como Freyre escreveu em seu Casa-grande e senzala, nem espelho nem bugiganga. Esses policiais são os novos senhores de uma escravidão contemporânea: no momento da “abordagem”, espantam homens que já haviam desembolsado R$ 10 para “meter”, como é traduzido sexo no Matagal. Sozinhos com elas, dão a ordem: “Agora tu vai fazer comigo o que tava fazendo com ele”.
É verdade que por ali também passam aqueles que levam as meninas para colocá-las em abrigos, onde, em tese, as coisas são melhores. Chegam, conversam, convencem, levam para um canto com banheiro, cama e pasta de dente. Alguns dias depois, às vezes apenas algumas horas, elas voltam para a ponte, para sobre o canal de esgotos. Acontece então a mesma lógica do retorno ao lixo. A grande diferença é que as meninas são pessoas vitimizadas por sucessivas administrações desastrosas em políticas de educação, saúde, emprego, lazer. São gente – Bianca, Carol, Andreza, Gerlane, Sthepanie, Patrícia, Emerson, Ruan, Rebeca – encarada como dejeto. E não adianta tirá-los daquela vida de dor e abandono quando tudo está cercado por ela.
Carol – a história de Bianca continuará em breve – não estava em casa quando fui procurá-la na tarde do dia 23 de outubro. Ela mora em um vão único feito de tijolos, sem reboco e sem banheiro, cuja porta foi arrombada semanas antes pela polícia. Naquele dia, dormia com Alex, com quem estava há cerca de dois meses. Chutaram a entrada e entraram aos gritos. Levaram ele para o Cotel (porte ilegal de arma e 15 gramas de crack). A casa (na Mangabeira, Zona Norte) fica ao lado de uma barreira onde os moradores que vivem mais acima do morro costumam jogar lixo. Às vezes, o vão entre a barreira e a casa de Carol fica totalmente tomado por sacos plásticos, garrafas, resto de comida, fezes. Uma vez, perguntei: “Você se sente desrespeitada?” Carol disse: “Todo dia”. Eu me preparava para anotar a fala, acreditando que ela ia citar a exploração sexual que sofre desde os 10 anos. Então, ela complementou: “Não tem como não sentir isso com todo mundo jogando merda na minha casa, né, tia?”
Naquela tarde, nenhum vizinho sabia dizer onde Carol estava. Enquanto a procurava pelas escadarias estreitas, dois policiais apareceram correndo, com pistolas na mão. Assustei-me, em contraste com os moradores da Rua do Umbuzeiro, que apenas observavam. Um deles, encostado no muro da residência onde morava, era Alexandre Costa Gomes, 26, conhecido como Buiu. Dez dias depois, ele seria assassinado à faca e jogado em uma barreira parecida com aquela onde se joga o lixo, ao lado da casa de Carol. Se para mim a correria dos policiais com armas em punho indicava que algo muito sério estava acontecendo, para Buiu e os outros, não: “Ah, isso é quase todo dia, moça. Sempre tem gente aqui apanhando de graça”, contou José, que já foi espancado mais de sete vezes por equipes da Patrulha do Bairro – sua esposa, Rejane, também. Ela estava com os braços arranhados por conta da última “abordagem” sofrida pelos policiais (a lamentável ação policial presente nesta série foi o foco da entrevista com o secretário de Defesa Social, Wilson Damázio. Leia na quinta, 19). José e sua sogra, Miranda, contavam como a PM se comportava ali – os filhos dela, também pretos, também jovens, apanharam várias vezes. De repente, Carol apareceu.
Estava bastante suja, descalça, diferente de nossos encontros anteriores, quando surgia com os cabelos molhados do banho recém-tomado e roupas limpas. Sabia que ia encontrar uma repórter (em um dos encontros, também um fotógrafo) e procurava apresentar-se bem. Mantém uma relação instável com sua vaidade, que ficou em segundo plano naquela quarta-feira. Ali, era a garota emagrecida pelo crack e obviamente fora que qualquer esfera de proteção que me recebia. Usava um vestido justo, elástico, colorido e muito decotado, que desenhava totalmente sua barriga de seis meses.
– Oi, tia!
– Oi, Carol. Fui lá na sua casa. Lá tá tudo aberto, viu?
– Eu sei, tá assim desde que os homens arrombaram minha porta. Não tem nada pra levar mesmo.
– Onde você estava?
– Pedindo comida. Desci porque fiquei com fome, vou mentir não.
– Você não foi ontem lá para a ponte?
– Fui sim.
– E não rendeu nada?
– Rendeu R$ 90. Mas comprei tudo de pedra.
– Conseguiu comida?
– Arrumei três pães, um copo de suco e um pedaço de lasanha.
Carol nos desconcerta. É tão doce quanto dura, e alterna bastante uma alegria meio histérica com longos momentos de introspecção (“Eu gosto de ficar gritando, rindo. Quando a gente para, só pensa no que não quer”). Muito inteligente, orienta como deseja as meninas do Matagal, de quem é uma espécie de líder. Era difícil vê-la daquele jeito. Fomos até um mercado na mesma rua e compramos alguma comida. Banana, Danone, maçã, biscoito. Sabia que ela gostava muito de doces e inclui uma barra grande de chocolate. Deu R$ 20,77. Carol trocou o doce por outro de sua preferência. Sentamos em uma calçada e ela comeu metade do chocolate em poucas dentadas. Jogou a embalagem na vala. Dali, o plástico iria para o canal que corta o Matagal. Iria juntar-se ao lixo que ladeia o cotidiano de Carol. “Eu não vou sair hoje mais não, já tenho comida”, disse ela meio que para si mesma, enquanto eu tirava algumas fotos. “Tu quer me mostrar suja, né, tia?” “Não, Carol. Fotografei você em todos os nossos encontros. Não vou publicar essas imagens, são para me ajudar a escrever.” Ao ver de longe Stephanie e Patrícia, que vinham do outro lado da rua, ela levantou-se e saiu correndo, deixando repórter e sacolas na calçada. Patrícia tem 20 anos e é irmã de Bianca, a menina espancada pelo policial (na abertura da matéria). Está muito magra, parece uma criança, e só há poucos meses teve sua primeira menstruação. Stephanie, também conhecida como Novinho, é a única travesti que trabalha na ponte (às vezes há alguns homossexuais). Tem 17 anos. Ela e Patrícia, que moram juntas, são as amigas mais próximas de Carol. A segunda estava inconsolável: acreditava que dois rapazes que dormiram com elas haviam levado R$ 80 que ela guardava no short. “Não acredito, trabalhei a noite toda.” Queria chorar, mas segurava: as meninas riam todas as vezes que ela enchia os olhos de lágrimas.
– Carol (piscando para Stephanie): Tu não fumou esse dinheiro não? Não gastou com pedra?.
– Patrícia: Fumei não, porra. Ontem usei só duas eu juro!
– Stephanie: Eu acho que você perdeu esse dinheiro, os meninos não iam pegar não.
– Patrícia: Perdi não, merda! Eu não tava noiada! Tu diz isso porque quer defender teu namorado.
Patrícia referia-se a Tiago, 17 anos, com quem Stephanie mantém um relacionamento violento. Tentava controlar o choro quando seu celular tocou. Olhou o visor e não atendeu. Era seu pai, ligando do presídio. Foi detido acusado de molestar sexualmente uma criança de 4 anos. Também foi acusado de molestar as filhas (matéria da próxima terça). “Tô sem cabeça pra falar com ele.” Carol, alheia à amiga, mostrou a comida e, feliz, confirmou que, naquela noite, não iria trabalhar. “É, mas tu tem que arrumar dinheiro da dívida”, lembrou Stephanie (sua história é contada amanhã). Entrei na conversa.
– Tá devendo, Carol?
– Tô, tia, mas é besteira
– Quanto?
– R$ 140. Cem a um, R$ 40 a outro.
– Não é perigoso?
– Não, eu conheço os caras
Stephanie, meio incrédula:
– Pois Tiago tá devendo também e o menino disse que se ele não pagasse ia atirar pra deixar ele aleijado. Eu tô com medo, vou pagar.
– Tu é muito é besta.
– Besta não, só não quero que ele morra.
A morte violenta é algo que Carol, de certa maneira, naturalizou: em 29 de abril de 2005, quando ela tinha apenas 12 anos, sua mãe, Mazoneide Pereira, foi assassinada com várias facadas pelo padrasto, que meses depois também morreria assassinado. Carol estava dormindo e levantou-se com o barulho. Sua mãe ainda vivia. “Eu vi e fiquei normal. Não achei que ela fosse morrer.” Mazoneide teve sete filhos – além de Carol, Jessica, Ana Thalia, Carina, Fábio, Augusto, Gabriel (este também preso no Cotel, também acusado de roubo e tráfico). Carol conheceu pouco o pai, que não está identificado em sua certidão de nascimento: só lembra que o chamavam de Chico e que ele “era muito bom e morreu de cachaça”. Sobre a mãe: “Não lembro de nada bom. A gente vivia pedindo em sinal, né tia?”
De fato, a jovem e os irmãos costumavam acompanhar a mãe nos sinais de trânsito da cidade, principalmente nos bairros da Jaqueira e Espinheiro, mais abastados. Mazoneide era amiga de Silvana, mãe de Patrícia e Bianca. Compartilhavam coleguismo e pobreza. Foi nesse tempo que Carol começou a ser explorada sexualmente: aos 10 anos, conta, “sarrava” em troca de dinheiro. Homens de várias idades aproveitavam sua situação vulnerável para oferecer alguns reais em troca de carícias. Só não havia penetração. Tinha colegas que já faziam o mesmo, uma das irmãs mais velhas também. Todas iam sendo formadas nas ruas do Recife, que assumiram a função pedagógica não cumprida pela escola. Naquele cotidiano, foi forjada uma ética própria, que se distancia muito de uma noção geral do que é certo ou errado, na qual não cabem os senões e sermões de quem foi criado com amor, lençóis limpos e dinheiro para comprar o lanche do recreio.
– No Matagal, você já apanhou?
– Já, tia. Principalmente de cara com moto, é o que mais aparece. Eles chegam, fazem o programa e vão embora sem pagar. Também batem quando a gente não quer ficar com eles. Uma vez tive pena de Stephanie, os policiais chegaram lá, botaram os homens pra correr e depois obrigaram ela a fazer sexo oral neles.
Cada transa, se realizada no Matagal ou dentro de um carro estacionado ali, dura entre 10, 15 minutos: é só o tempo de o “parceiro” gozar, pagar (quando pagam) e já é vez de esperar o próximo. Às vezes as meninas também são levadas para motéis na Avenida Norte, PE-15 ou Apipucos. A maioria dos homens escolhe as meninas de acordo com o biotipo, e é espantoso perceber como são justamente as menores e mais magras as preferidas. Era assim com Bianca, quase uma criança, é assim com Patrícia, que aparenta ser uma. Carol tem alguns clientes fixos. Não sabe o nome da maioria. Ela conta: “Tem o do carro azul, que passa lá só para sair comigo e me paga R$ 20. Ele nem transa, é só para chupar. Tem o de uma Hilux que vai toda quarta-feira, este quer que eu faça tudo. E tem dois, Marcos e Antônio, que me ajudam, me dão um dinheiro a mais, às vezes R$ 40. Uma vez um homem pagou os R$ 10 e pediu que eu não tirasse a roupa. Só queria me falar de Deus. E tem o taxista, que é o pai do meu filho.” “Qual o nome dele?” “Sei não. Eu chamo de taxista, só isso.”
De vez em quando, ela encontra aqueles com quem transou à noite pelas ruas, à luz do dia. Passam por ela e não falam. Ao ignorá-la, a apagam, um processo que ela começou a sentir ainda muito pequena, em frente aos vidros dos carros que iam se fechando nos sinais. Por conta de coisas assim, apaixonou-se por Alex: já o conhecia, o crack de alguma maneira os aproximou, mas, depois do primeiro programa, quis mais. Disse que gostava dele e passaram a ficar juntos. “Alex não tinha vergonha de mim, andava na rua comigo. Com ele eu me controlava.” Embora breve, a vida com o namorado também sugeriu a Carol que o cotidiano poderia ser outro além da ponte. “Eu ficava em casa, dormia umas nove horas, acordava com ele... comia direito, a mãe dele nos dava comida. Eu me arrumava todinha pra ele, tia.”
O afeto de Alex, era, no entanto, intercalado com a raiva: Carol apanhou ao menos cinco vezes do rapaz. A princípio, ela negou a violência, já relatada por suas amigas. Depois, assumiu as agressões, mas com uma condição para si própria: culpar-se pelos murros que levou. “Ele ficava com raiva porque às vezes eu descia, fazia programa e depois ia procurar ele... ele tem razão de bater, né? A gente que é mulher sabe que tem tanto homem safado e ainda vai ali para a ponte...” Naturalizando mais uma vez a brutalidade masculina sobre si, ela não faz nenhuma relação entre a história pela qual passa e aquela vivida por sua mãe. Há semanas sem ver o namorado preso – não tinha documento de identidade para poder entrar na prisão – Carol ficou transtornada quando, no dia 6 de novembro, soube que Alex havia sido encaminhado para o presídio Professor Aníbal Bruno, no Sancho, Zona Oeste da cidade. Era o sinal de que ele passaria muito mais tempo recolhido. Nos encontramos à tarde e ela queria ir até um dos abrigos pelos quais passou para buscar uma xerox de sua certidão de nascimento e, com ela, tentar um novo RG. “Hoje eu não posso, Carol. Podemos ir amanhã.” A negativa foi como uma tapa: a sempre delicada relação entre repórter e personagem rapidamente foi colocada à prova. “A senhora prometeu, agora não quer me ajudar.” “Eu não disse que não ia lhe ajudar, só não posso hoje, nós podemos ir amanhã.” “Não precisa mais. Eu não quero mais.” Carol levantou-se e saiu. Minutos depois, voltou, me chamou. Encostou a cabeça no muro e escondeu o rosto. “Eu não posso hoje porque marquei uma entrevista. Nós podemos ir amanhã, Carol.” Vi as lágrimas molhando o chão e parte do seu pé. “Carol?” Sem dizer nada, ela se afastou. No outro dia, com a xerox do documento nas mãos (cedida pelo Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente, onde Carol tinha mais de oito passagens), voltei a procurá-la. Ela não estava: escondia-se na casa de Marcos, um dos clientes, porque estava sendo procurada pela polícia. Naquela madrugada, jogou álcool em uma pequena loja de consertos de estofados que fica próxima ao Matagal e queimou parte do lugar. A polícia chegou, depois os Bombeiros. Parte da energia na Avenida Norte foi cortada. Patrícia não estava na ponte naquele dia. Carol fugiu, mas Stephanie, que voltava de um programa no momento da confusão, foi presa.