EXCLUÍDOS DE TUDO
Eles não possuem nada. Falta de tudo. Ruas para trafegar, calçadas para caminhar e espaço para pedalar. A periferia do Grande Recife é desprovida de qualquer mobilidade. Não há a presença do poder público fiscalizando, ordenando, disciplinando. Gestores são vistos pontualmente, em lugares e situações específicas. O subúrbio vive à margem das regras urbanísticas, sem direto à qualidade de vida. Nada tem. Falta infraestrutura. Faltam consciência cidadã e civilidade, essenciais à mobilidade urbana de qualquer cidade ou bairro. Também não há campanhas educativas. Por tudo isso, a periferia está travando. Em diversos bairros, travou.
A partir de agora e nas próximas duas semanas, entraremos nesse mundo com o especial multimídia A Periferia Travada. Daremos voz aqueles que pouco são ouvidos. Revelaremos as dificuldades de mobilidade dos moradores de alguns subúrbios do Grande Recife. É em bairros da periferia, alguns próximos ao Centro, mas extremamente carentes de infraestrutura, onde residem 80% da população metropolitana. Na capital, menos de 200 mil dos 1,5 milhão de habitantes residem nos chamados bairros de classe média, mais estruturados e atendidos. Mostraremos que, se as classes média e alta recifenses estão sofrendo com a discrepância entre a invasão de automóveis nas ruas e os investimentos em soluções de mobilidade para a população, imaginem aqueles que vivem em bairros periféricos. Lugares onde vielas de cinco metros são consideradas avenidas, por onde ônibus se espremem para embarcar e desembarcar o trabalhador antes de entrar nos grandes corredores viários da cidade. Ruas quase sempre sem sinalização de trânsito e tomadas por lixo e obstáculos de todo tipo. Áreas totalmente desprovidas, tranformadas em terra sem lei. O cenário escolhido é recifense, mas a realidade é brasileira, pode ser vista nas muitas periferias do Brasil, independentemente de região ou Estado.
A dificuldade de ir e vir não existe apenas nas Avenidas Boa Viagem, Conselheiro Aguiar (Zona Sul do Recife), Rosa e Silva e Rui Barbosa (Zona Norte), Abdias de Carvalho e Caxangá (Zona Oeste) ou Agamenon Magalhães (área central), como muita gente pensa. Todas enfrentam sérios problemas de retenção diariamente, mas são algumas das vias que sustentam o sistema viário do Grande Recife e, por isso, ainda recebem atenção, com a presença de fiscalização eletrônica, controladores e até agentes de trânsito. São privilegiadas. A periferia não. Está esquecida. No aspecto da mobilidade, totalmente ignorada. As atenções, quando dadas, são todas para as grandes avenidas.
Com poucas exceções, agente de trânsito raramente são vistos por lá. O que representa um contrasenso, especialmente sob a ótica do transporte coletivo, para quem a periferia é o princípio de tudo. É do subúrbio que sai a maior parte dos ônibus e é para lá que eles retornam. Os números do gestor do sistema na Região Metropolitana, o Grande Recife Consórcio de Transporte, comprovam essa força. Das 442 linhas em operação (incluindo as linhas da madrugada), 351 saem dos subúrbios. E, ao menos nas ruas, conversando com o povo, é quase unanimidade afirmar que é na periferia onde se encara os principais obstáculos do percurso diário. Não importa se de ônibus, carro, a pé ou de bicicleta.
Se falta acessibilidade nas ruas, imagine nas calçadas. Elas sequer existem. Quando há o passeio público, quase sempre ele é desrespeitado, obstruído. Para quem é ciclista, o subúrbio é um lugar ainda mais inóspito. Só a necessidade, que alimenta a coragem, faz trabalhadores usarem a bicicleta. As condições na periferia para esse tipo de modal são as piores possíveis!

"É um inferno até chegar à Avenida Norte. A partir dela, o caminho é uma maravilha. Mesmo com todos os problemas da via e o congestionamento pesado, nada se compara à confusão das Ruas Nova Descoberta e Vasco da Gama. O trânsito pode travar a qualquer momento e a própria população tem que resolver”, reclama o motorista da linha Nova Descoberta-Cabugá, Flávio Alves, que percorre quatro quilômetros por vielas, desviando de pedestres que andam na rua porque as calçadas foram invadidas ou obstruídas, de carros estacionados em qualquer lugar e sentido e de ciclistas que não têm espaço para circular.

"Desisti. Pedi para a empresa me transferir de terminal. Não suporto mais trabalhar fiscalizando a linha Alto Três Carneiros (Vera Cruz). O aperto, a confusão. A área do terminal é muito pequena, temos muita dificuldade de manobrar, o risco de atropelamento ou acidente é grande. Estressa. São muitos carros e a população não tem consciência, estaciona onde quer”, desabafa o fiscal Edmilson Torres, há 15 anos na profissão.
Quando o povo vira agente de trânsito

Na periferia, qualquer cidadão vira agente de trânsito. Orienta a circulação, destrava as retenções, libera o caminho para os ônibus e até ajuda no socorro de vítimas de acidentes. Diante da ausência da fiscalização, o povo se faz presente. Um ajuda o outro. Tem que ser assim. Caso contrário, ninguém sai do lugar. À vezes, mesmo pontualmente, o privado assume o papel do público. É a saída. Em Nova Descoberta, o décimo bairro mais populoso do Recife, cercado por bairros também populosos, como Água Fria e Vasco da Gama, uma empresa de ônibus paga dois controladores para ajudar a destravar o trânsito e, assim, minimizar as perdas de viagens diárias.
Geysa Monteiro e Alcides Porto atuam no centro nervoso do bairro, a Avenida Nova Descoberta, nas imediações do mercado público. Trabalham de manhã e à tarde, de segunda a sábado, há um ano. Foram treinados pela CTTU e são pagos pela empresa Pedrosa, que somente no mês de maio registrou a perda de 3.029 viagens das 17 linhas que operam. Das quais, 2.872 foram perdidas devido a congestionamentos. O prejuízo foi sentido na pele e, mesmo depois de muitos apelos às gestões municipais, sem resultado, resolveram agir. “Foi a solução que encontramos. Eles ajudam a fazer o trânsito fluir quando tudo trava, o que acontece todos os dias”, argumenta Antero Parahyba, diretor executivo da Pedrosa. Por não multarem, é comum os controladores serem desrespeitados por todos. Mas de forma geral ajudam. Sem eles, seria terra de ninguém mesmo.
APAIXONADOS PELO AUTOMÓVEL

O automóvel ainda encanta muitos. No Brasil, representa sonho de consumo e símbolo de status. Tem esse poder sobre as classes média e alta, ainda maior sobre os moradores do subúrbio, maioria da população metropolitana. Um povo desassistido de tudo e que, com pouquíssimas exceções, encontra no carro a libertação da humilhante rotina de imobilidade em que vive, sem calçadas para caminhar ou transporte público decente e confiável para utilizar. A periferia também se apaixonou pelo carro.
Quatro, cinco anos atrás, quem não possuía um, sonhava em tê-lo. Agora, muitos desses sonhadores do passado o possuem. É a nova face motorizada da periferia. E, talvez mais do que a classe média, sofre com esse amor. É uma relação quase frustante porque não há espaço para acomodá-los nos subúrbios. Faltam garagens, até ruas. É uma idolatria que compromete e potencializa a falta de infraestrutura do subúrbio. É carro demais para espaço de menos.E nessa relação conflituosa vale de tudo. Estacionar numa calçada que possui menos de um metro, na rua de terra batida e com apenas quatro metros, na parada de ônibus ou impedindo a passagem do coletivo. Vale abrir espaço na barreira ou improvisar uma garagem no menor espaço possível, aperfeiçoando no dia a dia a habilidade de manobra. Vale até estacionar o veículo no quintal de casa, deixando quase metade de fora, para a rua.
Os carros, em muitas situações, viram obstáculos no sistema viário da periferia. Sem infraestrutura e sem a presença da fiscalização pública, a população vai se arrumando como pode no subúrbio. Assim como nos principais bairros comerciais e residenciais de classe média e alta, na periferia as ruas estão tomadas por automóveis, estacionados do jeito que dá. Aliás, do jeitinho que dá mesmo. Impressiona a quantidade de automóveis encontrados no subúrbio. Há ruas em que os veículos precisam andar de ré porque não há passagem.
A 4ª Rua do Colégio, no limite dos bairros de Prazeres e Cajueiro Seco, Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife, é um exemplo do preço que o subúrbio está pagando por ter se rendido ao consumo automobilístico sem dispor de infraestrutura para isso. Tecnicamente, há um entendimento de que a estrutura viária das cidades nunca será suficiente para acomodar a voracidade do crescimento da frota veicular, por isso a necessidade de investir em transporte de massa, metrô e ônibus. Mas há bairros periféricos em que o poder público já deveria ter intervido para ampliar o espaço ou proibir a transformação em estacionamento público.
A via possui quatro metros, é metade de terra e metade de um asfalto improvisado - colocado pelos próprios moradores, vale ressaltar - e acomoda entre 18 e 25 automóveis. “Há quatro anos a situação não era essa. Poucas pessoas tinham carro. Hoje todo mundo tem, às vezes dois ou três. E, de fato, nossa rua não comporta. Além de estreita, são quatro metros, começa numa curva e termina em outra. À noite, principalmente, vira um mar de carros estacionados. E é uma via muito utilizada por ser a primeira paralela da Avenida Santo Elias, acesso e retorno para quem quer chegar à Avenida Barreto de Menezes”, reclama o comerciante Saulo das Virgens, como é conhecido no bairro. Há dias em que é preciso voltar de ré porque os carros tomam todos os espaços. Ao redor há várias vias na mesma situação.
São muitas as periferias sem infraestrutura e com a maior parte dos veículos metropolitanos. Os números mostram que o subúrbio está tomado pelos atomóveis. Mais de 80% da frota das cidades do Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes está nos bairros periféricos, segundo levantamento do Detran-PE. No Recife, depois de Boa Viagem, que possuía 92.500 veículos registrados até julho, os líderes em números são os bairros da Imbiribeira e Iputinga. Em Jabotão, Prazeres e Cajueiro Seco ocupam o terceiro e quarto lugar, perdendo apenas para Piedade e Candeias, considerados de classe média e alta no município. Já em Olinda, a periferia domina, liderando o ranking com os bairros de Rio Doce, Jardim Atlântico e Peixinhos, nessa ordem. Ganham para Casa Caiada e Bairro Novo.
Sem infraestrutura, mas com muito carro. Qual a solução? Esqueça a opção usar o transporte coletivo - na periferia ele demora ainda mais, na maioria dos lugares tem poucas linhas e circula por ruas que na verdade são vielas. A pé e de bicicleta é ainda mais difícil. A saída é a proliferação de garagens rotativas e mensais para acomodar os veículos. Já podem ser vistas aos montes pelos subúrbios, com taxas mensais altas. R$ 50 é a mensalidade de uma garagem sem coberta, R$ 70 de uma protegida. Em Nova Descoberta, há três garagens num percurso de um quilômetro e meio.
Carros para ter qualidade de vida

São três automóveis na casa do comissário de polícia aposentado Sílvio Lucena, 60 anos, morador de Lagoa Encantada, no bairro da Cohab, subúrbio da Zona Sul do Recife, o segundo mais popular e o 11º em quantidade de carros. Ele personifica, como ninguém, a nova face motorizada da periferia. A casa, ampla e agradável, localizada numa rua pavimentada do bairro, consegue acomodar dois dos veículos. O terceiro, um táxi, fica com um motorista terceirizado. Todos são novos (2013/2013), comprados zero quilômetro: um Gran Siena, um novo Uno e um Siena. Sempre teve carro, mas há dois anos comprou o segundo e ano passado passou para o terceiro. Paga quase R$ 2 mil por mês em prestações a perder de vista. A renda paga pelo motorista do táxi cobre as parcelas de um dos automóveis.
Sílvio Lucena também reflete a real necessidade da maioria dos que moram nos subúrbios. As facilidades oferecidas pelo governo para o consumo veicular estimularam as compras, sem dúvida, mas as dificuldades de mobilidade foram o que, de fato, pesaram. “Sofro demais no trânsito mesmo estando num carro. O subúrbio vive abandonado pelo poder público. Quando há um pouco de sinalização de trânsito, falta a fiscalização. Aí ninguém respeita. Levo até 1h30 somente para sair da Lagoa Encantada, passar pelo Ibura e chegar à Avenida Recife, por exemplo. Isso porque estou de carro. Sem ele, dependendo do ônibus, seria massacrante. Por isso adquiri automóveis”, afirma, firmemente.
Por tudo isso, não pensa em ficar sem carro, assim como deixar o bairro. “Minha mulher já pediu, mas não saio. Adoro isso aqui”, finaliza. Ah! A segunda filha do comissário e o filho, casados, também possuem automóveis em suas casas.
Sobrevivendo dos automóveis

“Sandro Barbosa, 33 anos, conhecido como Irmão Sandro, sustenta a família com a arrecadação da garagem mensal que possui no Córrego da Bica, também em Nova Descoberta. São 30 carros e, assim como em outros negócios do tipo, que vêm se proliferando pelos subúrbios, possui lista de espera. São 20 vagas cobertas e dez desprotegidas.
Custam R$ 70 e só guardam veículos zero quilômetro, no máximo com um ano de uso. Há, ainda, vagas para motos. Custam R$ 35. A maioria dos moradores escolheu a garagem do Irmão para não correr riscos ao estacionar seus automóveis nas ruas. “Aluguei o terreno há três anos exatamente para isso. Vi a explosão de veículos no bairro e a dificuldade dos moradores de estacioná-los e, principalmente, guardá-los à noite. Vem dando certo desde então”, comemora.
Idolatria que custa caro
A adoração pelo automóvel também se confirma pelo endividamento da população. O financiamento de carros é a terceira principal dívida assumida pelo brasileiro. Em julho de 2014, 13,2% das famílias brasileiras endividadas possuíam débitos com o financiamento de automóveis. O brasileiro vem assumindo mais dívidas com a compra de carros do que da casa própria. Os que se endividaram com a compra de um lar representam um percentual de apenas 7,6% das famílias endividadas. Os números são da pesquisa de endividamento e inadimplência do consumidor, realizada mensalmente pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
A compra de automóveis permanece ainda bem abaixo das despesas do brasileiro com o cartão de crédito (76,6%), mas perde apenas para o compromisso com os carnês (16,3%). E 10,3% dos endividados com o financiamento do automóvel próprio recebiam até dez salários mínimos na classificação criada pela pesquisa. A predominância desse tipo de dívida, entretanto, continua sendo dos mais ricos: 26,8% ganhavam mais de dez salários. A explosão de endividamento com o financiamente de automóveis aconteceu, de fato, em 2010, quando o Brasil vivia o auge do estímulo à compra do carro próprio. Agora, esses veículos estão quitados e nas ruas. Mas o Nordeste ainda é a região que apresenta o menor percentual de endividamento com o finaciamento do veículo individual do País: 6,4% contra 22,4% da região Centro-Oeste, 15,1% do Sudeste, 11% do Sul e 10,5% do Norte.
OS SEM-CARRO

Eles cansaram. Desistiram do peso da propriedade do automóvel. Não desistiram de utilizá-lo quando necessário, mas abdicaram da necessidade da posse. De tê-lo na garagem ou usá-lo para tudo. Cansaram, principalmente, do custo da propriedade do carro. Passaram a perceber que não precisavam possuí-lo porque o uso e, principalmente, a vontade de utilizá-lo, estavam deixando de ser preponderantes em suas vidas. Que era e é possível, para o dia a dia, fazer deslocamentos de ônibus, táxi e, principalmente, de bicicleta. Que o custo da posse estava sendo potencializado pelas horas presas em congestionamentos e pela dificuldade de estacionar. Que é possível viver sem ser proprietário de um automóvel. Apresento a vocês Os Sem-Carro. Um grupo que, mesmo ainda de forma tímida e discreta, começa a crescer nas cidades, especialmente nas classes médias do País. É bem maior na Europa e nos Estados Unidos, onde pesquisas já apontam que possuir um automóvel não faz mais parte do sonho do novo jovem urbano.
Entre eles há de tudo um pouco. Aqueles que venderam seus carros depois de dez, 15, 17 anos como proprietários de automóveis, os que planejam vender, mesmo residindo em bairros periféricos e enfrentando mais dificuldades de mobilidade, e os que nunca sonharam com um carro. Aqueles que não têm no automóvel o símbolo do status, da comprovação da emancipação profissional, do sucesso na vida. A maioria deles, é verdade, adotou a bicicleta para grande parte dos deslocamentos. Mas também faz uso do táxi, do ônibus e até do aluguel de carros quando necessário.
- Ah, mas e o medo de sofrer um acidente de bicicleta?
- E quando houver necessidades, como fazer feira ou ir ao médico?
- E para ir ao motel, sair para jantar com a mulher ou a namorada? Como se faz?
Eles têm respostas para todos os questionamentos. Em primeiro lugar, ressaltam que deixar de possuir um automóvel significa passar a utilizar o transporte coletivo e o táxi para distâncias maiores ou em algumas situações específicas, e a andar a pé. “Não é ser contra o automóvel ou deixar de utilizá-lo. É apenas usar quando, de fato, há necessidade. A maioria das pessoas faz deslocamentos de seis quilômetros de casa para o trabalho, que poderiam ser feitos de bicicleta, por exemplo. Mas é algo muito cultural. Somos estimulados ao status do carro e isso precisa ser vencido. Em fevereiro de 2013 vendi meu carro e comecei a perceber quanto dinheiro sobrava. Passei a investir em outras prioridades”, defende Cezar Martins, funcionário público federal, ciclista e, principalmente, cicloativista.
A periferia ainda é exceção no conceito dos Sem-Carro. Eles se proliferam mesmo é nos bairros de classe média e alta do Recife, localizados a uma distância de até dez quilômetros do Centro. Mas a ideia começa a ser disseminada, lentamente, pelo subúrbio. O jovem Raphael Araújo, programador de softwares, é um exemplo. Sente-se morador do Arruda, embora o endereço oficial seja Água Fria, bairros vizinhos da periferia da Zona Norte recifense. Ganhou um carro do pai em 2011, um Fiat Uno 2002, para pagar como desse e quando pudesse. Andou 10 mil quilômetros com o veículo nesses três anos, percebeu que não se adequava mais ao seu estilo de vida e agora está com o carro à venda. No para-brisa e vidros laterais, o simbolismo da decisão grafado: “À venda, finalmente. Ligue já!”.
“Comecei a perceber que o carro não se adequava mais ao meu estilo de vida. Usava muito pouco. Trabalho em casa, faço a maioria dos meus deslocamentos de bicicleta e de ônibus. Hoje, se vou sair à noite e quero beber, não posso ir de carro. Se vou resolver qualquer coisa, fico preso no trânsito, tenho dificuldade para estacionar e gasto dinheiro quando consigo. Não valia a pena”, atesta.
Possuir um automóvel, de fato, custa muito, muito caro. Oferece conforto, sem dúvida, mas diante dos permanentes congestionamentos, o custo X benefício começa a não valer à pena para algumas pessoas. Envolve custos que muitas vezes não são percebidos pela maioria dos motoristas. Muitos calculam apenas a despesa que possuem com combustível, estacionamento e parcela do financiamento. Mas há muito mais por trás. A pedido do JC, o especialista em planejamento de transporte e consultor em transporte urbano, César Cavalcanti, calculou o custo mensal de um carro para uma pessoa que possui um veículo Corsa, ano 2008, motor 1.0, e que percorre, em média, 20 quilômetros por dia. Um perfil encontrado aos montes nas cidades metropolitanas e, por isso, escolhido pela reportagem.
Uma pessoa que precisa do automóvel para todas as suas atividades, como levar os filhos à escola, ao esporte, resolver pequenas tarefas, ir e vir do trabalho. E que, claro, presume-se que faça as manutenções devidas no veículo, além de ter gastos extras como estacionamento. No fim das contas, os números impressionam. O personagem escolhido pelo JC gasta, com seu automóvel, R$ 1,45 por cada quilômetro percorrido, ou seja: R$ 872,85 por mês e R$ 10.474,20 por ano.
ELES NÃO ESTÃO NEM AÍ PARA O AUTOMÓVEL
Raphael, Victor e Gaia, Guilherme. Eles não estão nem aí para o automóvel. Possuir um carro não simboliza status, sucesso profissional, conforto ou mobilidade para essa turma. São os novos jovens urbanos das cidades castigadas pelo travamento quase permanente de suas avenidas, ruas e até vielas. Cansaram de se arrastar nos automóveis pelas ruas do Recife. Eles vão e vêm sem depender de um carro. Raphael decidiu repassar o veículo quando ia começar a pagá-lo, Guilherme sofreu antes de decidir vender e fez até despedida, enquanto Victor e Gaia nunca sonharam com um.

Guilherme Jordão, 30 anos, é o mais curioso deles. Associa o automóvel ao caracol por entender que as pessoas perdem tanto tempo nos congestionamentos que transformam seus carros em casas móveis, onde possam encontrar um pouco do que mais precisam. E, diante de um trânsito pesado, seguem pelas ruas arrastando suas casas, como um caracol. Hoje, mesmo sendo chefe da Defensoria Pública da União (DPU), vive numa bicicleta. Percorre, quase que diariamente, os quatro quilômetros que o separam de casa para o trabalho em 15 minutos, e até feira faz na bike. “Um dia, percebi que estava surtando. Tinha transformado meu automóvel em casa e já estava no atalho do atalho do caminho que costumava fazer para fugir dos engarrafamentos. Mas, mesmo assim, continuava preso no meu carro-casa-caracol. Aí, vi um velhinho passando de bicicleta, indo embora pelo meio do congestionamento. Comecei a pensar sobre aquilo e percebi que via o mundo pela janela do meu carro. Que gastava R$ 2.500 por mês para “ter” um carro. Percebi que vivia preso numa concha de aço, me arrastando no engarrafamento, carregando uma casa... eu era um caracol”, resume.

Victor Senna, 28, advogado, nunca quis possuir um automóvel, namora Gaia Penteado, 22, produtora cultural, que também nunca teve no carro o sonho de consumo juvenil. Os dois fazem quase tudo de bicicleta e, quando há necessidade, de ônibus ou táxi. Às vezes alugam um carro também. Gaia, por exemplo, gasta R$ 600 por mês para utilizar um automóvel três vezes na semana, quando a profissão exige. Victor, chegou a trabalhar numa concessionária de carros e por pouquíssimo tempo alimentou o desejo de ter um. Mas passou. Ah, eles também namoram de bicicleta. Saem à noite, frequentam barzinhos, vão ao cinema e tudo o mais. Quando não de bike, a pé, de ônibus ou táxi.
Já Raphael Araújo, 28, percebeu que o carro não se enquadrava mais na sua rotina, na sua vida. Ia começar a pagá-lo ao pai, mas decidiu devolvê-lo e colocar à venda. E como está: “Feliz, não me faz a menor falta”, conclui.
As 10 perguntas que você vai ouvir se for vender o carro
O JC reproduz post curioso do Cicloação, um blog dos cicloativistas recifenses que aborda, com bom humor e várias pitadas de sarcasmo, a essência carrocrata da sociedade brasileira. O texto é de autoria do cicloativista Cezar Martins, gerenciador do blog. Para vê-lo na íntegra, acesse: www.cicloacao.org