A Revolução de 1817 abalou a corte de Dom João, diz Laurentino Gomes

O jornalista Lauretino Gomes defende a relevância histórica do movimento de 1817 e grifa que ato foi mais importante no processo revolucionário brasileiro do que Inconfidência Mineira.

Por Marcela Balbino

Autor de três livros que se tornaram campeões de venda sobre a história brasileira, o jornalista Lauretino Gomes defende a relevância histórica do movimento de 1817 e grifa que ato foi mais importante no processo revolucionário brasileiro do que Inconfidência Mineira. "A Revolução de 1817 abalou a confiança no sonho de construção de império nos trópicos alimentado pela corte de Dom João", grifa. Em uma das obras, 1808, em que conta a chegada da família Real Portuguesa ao Brasil, ele descreve a Revolução Pernambucana e o desenrolar do momento político no Brasil. 

JORNAL DO COMMERCIO - Apesar da importância para história, o movimento pernambucano de 1817 foi relegado e é tratado diferente na historiografia brasileira. Movimentos como a Inconfidência Mineira, por exemplo, têm muito mais espaço e destaque nas salas de aula. Com base em suas pesquisas sobre o tema, a que poderíamos atribuir esse desprezo histórico?


LAURENTINO GOMES - No meu entender, a Revolução Pernambucana de 1817 foi mais importante do que a Inconfidência Mineira de 1789. Por duas razões principais. A primeira tem a ver com a dimensão territorial do movimento e o número de pessoas nele envolvido, que extrapolou em muito as fronteiras pernambucanas e mobilizou simpatizantes em todas as províncias vizinhas, em especial no Ceará, na Paraíba e no Rio Grande do Norte. O segundo motivo foram a organização e os desdobramentos da revolta. A Inconfidência Mineira envolveu um grupo relativamente pequenos de mineradores de ouro e dimantes, intelectuais e funcionários públicos. Seus verdadeiros objetivos até hoje permanecem na penumbra. Alguns líderes queriam apenas suspender a derrama. Outros, como Tiradentes, queriam a independência, mas não se sabe se de todo o Brasil ou apenas da região minadora ao redor de Vila Rica. Já a Revolução Pernambucana proclamou documentos, anunciou decisões e teve um ideário muito bem definido. Uma república chegou a ser formalmente proclamada no Nordeste. Houve a convocação de uma assembleia constituinte. Cruz Cabugá foi enviado aos Estados Unidos, em busca de apoio e reconhecimento do governo americano. Apesar disso, a diferença de tratamento na historiagrafia brasileira é brutal. Na minha opinião, isso se deve a uma mistura de preconceito regional e de medo. A Inconfidência Mineira ocorreu em Minas Gerais e Tiradentes foi enforcado no Rio de Janeiro, portanto, no centro do poder da colônia e na mais rica província durante todo o século 18. Isso deu mais visibilidade ao movimento. O medo diz respeito ao risco concreto de fragmentação do território nacional representada pela Revolução de 1817. Esse risco não houve na Inconfidência Mineira ou, pelo menos, não ficou aparente. A manutenção da integridade territorial era considerada a maior de todas as conquistas da América Portuguesa. Para a elite da época, a hipótese de uma divisão ou separação do território era impensável. Por essa razão, a revolta pernambucana tinha de ser rapidamente jogada no esquecimento. O quanto menos estudada fosse, especialmente em salas de aulas, melhor. E foi o que aconteceu nos dois séculos seguintes, ou seja, um esforço deliberado para esconder o que, na época, era considerado um mal exemplo para as demais províncias. Pelas mesmas razões, a Confederação do Equador, de 1824/25, e a Revolução Farroupilha de 1835, no Rio Grande do Sul, são hoje menos estudadas do que merecem.


JC - A revolução de 1817 em Pernambuco foi muito marcada pelos ideais da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade. No entanto, esses ideais foram pensados, somente, para comerciantes e os detentores do dinheiro. Há traços abolicionistas no movimento?


LAURENTINO - A escravidão é o grande bode na sala da Revolução Pernambucana. Seus documentos defendiam ideais republicanos e liberais, inspirados pela Revolução Francesa, que tinha como lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade e propunha que todos os seres humanos nasciam livres e com direitos iguais. Apesar disso, em momento algum as proclamações de 1817 sugerem o fim do tráfico negreiro ou a abolição da escravatura. O motivo é bem simples: alguns dos principais líderes do movimento eram senhores de engenho da Zona da Mata. Pertenciam, portanto, à mais fina flor da aristocracia rural escravagista da época. Um dos filhos do líder revolucionário Domingos José Martins, homônimo do pai, se tornaria alguns anos mais tarde o maior traficante de escravos na costa do Benin, na África, onde até hoje existe uma numerosa familia de descendentes dele. Havia, claro, gente com simpatias abolicionistas no movimento, mas o tema era explosivo demais para ser defendido publicamente.

"A Revolução de 1817 abalou a confiança no sonho de construção de império nos trópicos alimentado pela corte de Dom João."

JC - Como a historiografia tratou esse movimento insurgente?


LAURENTINO - Tratou de forma preconceituosa, como se fosse produto de mentes irresponsáveis. Na verdade, a história do Brasil desse período sempre foi, excessivamente, contada pela perspectiva do Rio de Janeiro ou das margens do Ipiranga, como se o resto do Brasil não existisse ou como se todos os demais brasileiros fossem meros coadjuvantes de acontecimentos limitados às províncias da região no centro-sul do país. Acontecimentos importantes no processo de Independência, como as revoluções pernambucanas de 1817 e 1824/25, a guerra na Bahia ou a Batalha do Jenipapo, no Piauí, foram sempre substimados ou ignorados.


É uma visão desfocada que precisa ser corrigida. Esses acontecimentos mostram que havia projetos diferentes de Brasil, como o de Frei Caneca, em Pernambuco, ou o de Cipriano Barata, na Bahia. Como foram derrotados, acabaram também sendo esquecidos pela História. O processo de Independência envolveu todo o Brasil e custou muito sangue e sacrificio, em especial nas regiões Norte e Nordeste, onde muita gente pegou em armas ou morreu defendendo suas ideias.


JC - Por que a República de Pernambuco não prosperou e durou pouco mais de dois meses?


LAURENTINO - Acredito que as lideranças revolucionárias superestimaram a própria força e, principalmente, a adesão que esperavam obter no restante do Brasil e no exterior. O novo governo republicano permaneceu no poder pouco mais de dois meses, entre a primeira semana de março e o dia 20 de maio de 1817. Durante esse período, todas as tentativas de obter apoio das províncias vizinhas fracassaram. Houve simpatias, mas nenhuma ajuda concreta na forma de armas, dinheiro ou mesmo proclamação política. Na Bahia, o enviado da revolução, José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, o padre Roma, foi preso ao desembarcar e imediatamente fuzilado por ordem do governador, o Conde dos Arcos. No Rio Grande do Norte, o movimento conseguiu a adesão do proprietário de um grande engenho de açúcar, André de Albuquerque Maranhão. Depois de prender o governador José Inácio Borges e mandá-lo escoltado para Recife, Maranhão ocupou a vila de Natal e formou uma junta governativa, que não despertou o menor interesse da população. Foi apeado do poder em poucos dias. Cruz Cabugá foi enviado aos Estados Unidos, mas não recebeu do governo americano o apoio esperado. Além disso, o governo de Dom João VI mobilizou rapidamente suas forças e, a partir da Bahia, atacou e cercou os revolucionários de Pernambuco que, sem alternativas, foram obrigados a se render.


JC - Em um trecho da obra, o senhor cita que a revolução de 1817 ajudou a acelerar o processo de independência do Brasil em relação a Portugal. De que forma isso aconteceu se o processo foi duramente reprimido em tão pouco tempo?


LAURENTINO - Mesmo derrotado em pouco tempo, a Revolução de 1817 abalou a confiança no sonho de construção de império nos trópicos alimentado pela corte de Dom João. Mostrou que o Brasil tinha fissuras muito maiores do que se imaginava. Parte importante da elite pernambucana apoiou o movimento revolucionário, o que significa que a monarquia portuguesa nunca mais poderia contar com a adesão incondicional de seus súditos brasileiros, mesmo aqueles mais ricos e poderosos. Essas divergências iriam se revelar ainda mais profundas e irreconciáveis alguns anos mais tarde, durante a Guerra da Independência, a Confederação do Equador e as muitas revoltas regionais do período da Regência, entre 1831 e 1840. A Revolução de 1817 foi, portato, um avant-premier, ou um aperitivo, das enormes dificuldes que o Brasil enfrentaria nas décadas seguintes, durante o processo de consolidação da Independência.

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