Feridas abertas pelas torcidas organizadas

Há 15 anos, Rosa teve o sobrinho Daniel Ramos da Silva, torcedor do Sport, assassinado. O jovem de 17 anos foi morto com dois tiros, num confronto entre integrantes da Fanáutico e Torcida Jovem, no túnel Chico Science, após o clássico entre Sport e Náutico. Foi a primeira morte atribuída a uma torcida organizada em Pernambuco, impune até hoje.

Os tiros que acertaram o peito e a testa de Daniel, na noite de 18 de março de 2001, trouxeram outras consequências. A perda do jovem desestruturou a família, que mora numa casa humilde, no Ibura de Baixo. A mãe de Daniel, Nerita, não teve forças para superar a morte de seu único filho homem. Buscou refúgio na bebida. Embriagada, morreu atropelada por um ônibus, três anos depois. “Ela dizia que não tinha mais gosto pela vida... É difícil, a gente sente falta de Daniel”, afirma Rosa. Hoje ela luta para evitar que seu único filho tenha o mesmo destino do primo. “Ele tem 17 anos e está começando a querer ir para jogos do Sport, mas não deixo. Não quero que aconteça o mesmo”, desabafa.

Em 2007, foi a vez da dona de casa Hozineide Xavier ter a vida marcada pela violência das organizadas. No dia 11 de março, o filho rubro-negro Veronaldo, então com 21 anos, sofreu afundamento do crânio ao ser atingido por uma pedra lançada das arquibancadas do estádio do Arruda. Ficou tetraplégico e vive, desde então, numa cama.

A ação criminosa segue impune. Hozineide segue lutando pelo filho e em tempo integral. Faz seis anos que ela deixou de ser apenas mãe. Passou a ser multimulher. “Hoje sou médica, fonoaudióloga, fisioterapeuta... Sou tudo para o meu filho.”

Lucas Lyra, torcedor do Náutico, na cama do hospital
Lucas Lyra
paulo Ricardo durante seu trabalho
Paulo Ricardo
Veronaldo Xavier sobre a cama após incidente
Veronaldo Xavier

Sobra pouco tempo para ela, menos ainda para trabalhar e ajudar no sustento da família. A vida dos Xavier ficou mais difícil depois do incidente. Comprar comida, roupas, remédios requer muita ginástica para fazer render o salário mínimo que Hozineide recebe de pensão. Algumas vezes, amigos organizam campanhas para arrecadar doações para Veronaldo e para ela. “Não posso trabalhar, não posso fazer nada. Por seis meses recebi uma pensão de R$ 600 da Federação Pernambucana de Futebol, mas depois foi cancelada. Tudo falta e o Estado nunca se preocupou com a nossa situação.”

O clima de medo e tensão presente a cada partida de futebol em Pernambuco tem razão de ser. Na rua ninguém se sente seguro. Ninguém está seguro. No dia 16 de fevereiro de 2013, uma bala perdida feriu quase que mortalmente o alvirrubro Lucas Lyra, com 19 anos na época, em frente aos Aflitos. O tiro, disparado por um segurança da empresa de ônibus Pedrosa, que fazia escolta de torcedores rubro-negros, atingiu a cabeça do estudante. Lucas não estava envolvido em confusão. Apenas estava no local errado, na hora errada. Naquela noite, nem chegou a ver o Náutico enfrentar o Central. Foi direto para o Hospital da Restauração (HR).

A bala pôs fim não só aos planos de Lucas, mas de toda a família. Os primeiros dois meses, conta Mirela, irmã do estudante, foram praticamente vividos na rampa do HR. “A visita era às 15h30, mas a gente chegava de manhã e ficava até a noite para que Lucas sentisse a nossa presença”, lembra. Hoje, a família se divide entre a casa na Várzea e o Hospital Português, onde Lucas está internado faz três anos. Sem tempo para conciliar a assistência ao irmão e a vida profissional, Mirela optou por Lucas. Pediu demissão do laboratório de análises clínicas. “Ele passou a ser o nosso motivo de existir.”

No dia 2 de maio de 2014, membros de organizadas foram responsáveis por mais uma tragédia. Torcedores da Inferno Coral arremessaram dois vasos sanitários do alto das arquibancadas do Arruda. Um dos objetos acertou em cheio o rubro-negro Paulo Ricardo Gomes da Silva, 26 anos, na partida entre Santa Cruz e Paraná. Mais de dois anos após o crime, o pai José Paulo ainda mantém o quarto do filho da mesma forma. Farda de soldador naval passada na cama ao lado da prancha de surfe. “Tudo está aqui do mesmo jeito. Para mim é como se ele tivesse ido fazer uma viagem e vai voltar. Eu ainda não acredito que ele morreu, ainda mais de uma forma tão trágica”, lamenta.

Quando a dor une

Três pessoas que conheceram a dor e se conheceram por ela. Uma estudante, uma dona de casa e um autônomo. A primeira teve o irmão (Lucas Lyra) alvejado por um tiro na nuca em frente ao estádio dos Aflitos em 2013, o filho (Veronaldo Silvino da Silva) da segunda foi atingido na cabeça por uma pedra jogada das arquibancadas do Arruda em 2007, mesmo local de onde foi arremessado um vaso sanitário que matou o filho (Paulo Ricardo Gomes) da terceira, em 2014. O JC reuniu Mirela Lyra, Hozineide Xavier e José Paulo Gomes. Um encontro entre os que tiveram a rota de suas famílias modificada pela violência das organizadas.

Na primeira vez em que os três estiveram juntos sobrou emoção. O mesmo fardo de injustiça carregado se tornou mais leve quando sentiram que não estavam sós. A mágoa era comum, assim como o desejo de superá-la. “Essa reunião serviu para nos mostrar que o sofrimento é igual, somos todos vítimas dessa violência que não se acaba nos estádios de futebol. Eu perdi meu filho e elas estão com o irmão e o filho presos numa cama. Nada vai tirar essa dor do nosso coração”, afirmou José Paulo, que, em setembro do ano passado, viu os três responsáveis pelo crime serem condenados em júri popular.

O encontro também revelou que, antes mesmos dos crimes, as famílias já se ajudavam, mesmo sem saber. “Pouca gente sabe que Paulo Ricardo, antes de ser vítima das organizadas, doou sangue para o meu irmão no hospital. Foi um gesto de amor de alguém que nem imaginava que, mais tarde, também entraria para essa dolorosa estatística de violência”, contou Mirela, que vive a expectativa da realização do julgamento do autor do tiro que atingiu Lucas, ainda internado.

A cooperação entre as famílias só aumentou com o tempo. “Eu conheci a família de Paulo Ricardo quando fui prestar solidariedade no dia do júri dos acusados do crime. Por sentirmos a mesma dor, nasceu uma amizade. Até hoje eles prestam ajuda ao meu filho, inclusive já fizeram até campanha para arrecadar comida e dinheiro”, agradeceu Hozineide, que sofre para manter Veronaldo em uma cama, sem que o culpado nem sequer tenha sido identificado.

Três famílias que não querem ver outras na mesma situação. “Eu espero mais tolerância e respeito. A vida é mais importante do que qualquer cor de camisa. Nós não podemos nos tornar reféns do medo”, disse Mirela, de mãos dadas com Hozineide e José Paulo.

Grito de alerta pelas redes sociais

Márcio Roberto que sofreu agressão após clássico

As redes sociais têm ajudado as famílias das vítimas das torcidas organizadas a denunciar agressões e espancamentos. Os casos mais recentes só vieram à tona depois que amigos e parentes postaram as ocorrências.

Foi por meio do Whatsapp que o espancamento de Márcio Roberto Cavalcante da Silva (foto ao lado) se tornou público. A agressão ocorreu no dia 5 de maio, após o Clássico das Multidões, disputado no Arruda. O comerciante de 36 anos morreu 50 dias depois, no Hospital da Restauração, onde foi internado, em coma, com ferimentos na cabeça.

Márcio não integrava nenhuma organizada. Foi agredido nas imediações do estádio por três membros da Inferno Coral por vestir camisa do Sport. Ele tinha uma galeteria na comunidade do V9, em Olinda. Deixou três filhos pequenos. O crime segue impune.

A denúncia de agressão a um menor de 15 anos, postada no Facebook no dia 10 de abril, segundo relata a família, foi um manifesto e um grito de alerta.

O adolescente, cujo nome foi preservado, não tinha nenhum envolvimento com torcidas e muito menos havia assistido a uma partida de futebol. Ele foi xingado, humilhado e agredido dentro de um ônibus da linha Totó/Boa Viagem, por torcedores do Santa Cruz.

Desenho ilustrando o ato de violência sofrido dentro do ônibus

O jovem tinha ido ao cinema e voltava para casa com um casal de primos. Segundo os pais do rapaz, os agressores exigiram dinheiro e partiram para violência após a resposta negativa. “Depois de socos, pontapés e joelhadas, pegaram o seu celular e o expulsaram do ônibus. Ninguém dentro do coletivo ajudou. O casal de primos, que é mais claro que o meu menino, não sofreu nada. Segundo os ‘torcedores’, eles eram de família. E o meu filho, muito mais escuro, foi taxado de ‘marginal’”, denuncia a mãe.

"Somos todos vítimas dessa violência que não se acaba nos estádios"

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